O BIMBOQUEIRO
Quanto mais nos aproximávamos do nosso destino, mais a estrada se estreitava e serpenteava em curvas, era um sobe e desce amoado até chegamos na porteira branca da primeira fazenda, um corredor de passagem com precipícios dos dois lados, estávamos no topo dos montes quando avistamos a pequena casa no pé do paredão da serra.
Um colchete antes da casa e já avistávamos a figura do compadre, que ao ouvir o som do motor veio nos recepcionar, do alpendre acenava com a mão dando as boas vindas, era a hora da prosa, antes da travessia do rio, o leriato já começou com a peripécia de Dona Onça que nessa madrugada pegou um garote lá no pasto do grotão do pequizeiro.
Café colhido e torrado na fazenda, descia agradando o paladar, deixando seu gosto puro na boca, enquanto o causo pegava força na toada da conversa, o jeito simples de falar e a singeleza do cotidiano do sertanejo sempre me surpreende e me transborda de alegria.
Logo veio a notícia da dificuldade da estrada e com ela o oferecimento de ajuda para ajeitar o trecho que atravessava o rio, enxadão nas costas, facão na cinta e a prosa tomou o rumo da estrada, que com força e bom animo, logo deu jeito da gente seguir caminho, bem no primeiro alto veio uma das mais lindas vista que meus olhos já viram.
A terra enrugada formava um vale de grotas em um labirinto de matas e córregos sem fim, de longe timidamente se notava a estreita estrada que marcava os montes em um sobe e desce sem fim buscando caminho para a bimboca, em cada metro um desafio, o jeep reclamava a todo momento, mas não deixava barato a lida, ora capinzal, ora taquaral, ora simplesmente o cerrado ralo, sobe e desce em cascalho solto na estrada estreita que mal cabia o carro, sempre beirando um precipício ora na direita, ora na esquerda.
Até que aos poucos a estrada foi minguando e lá no fundo os olhos já podiam ver a mata densa e fechada onde o córrego abria trieiro para a água cristalina a fria que alimenta a vida do lugar, bem escondida aos olhos entre coqueiros de babaçu e gabiroba estava a casa simples feita de pau-a-pique, rustica e aconchegante, abrigo de um guerreiro, o sertanejo bimboqueiro.
O fogão de lenha bem no meio da casa serve para aquecer as noites de frio no grotão, onde o céu desce ao chão na neblina do amanhecer, o chão batido, as fruteiras no quintal, os cacos de cozinha amorcegados em estante de aroeira, as panelas de ferro grosso, copos de alumínio e pratos esmaltados na traieira de cozinha, cama no lugar do sofá, lamparina a querosene e veleiro nos quatro cantos.
O moedor de café, o cheiro da lenha a esquentar a água, a prosa, o sentimento de amizade, os causo de onça pegadeira de criação, causo de peixe grande, de treita e mais treita da bicharada, causo de cobra mordedeira, a temida e lendária jaracuçu, da rabo de osso.
Janela e porta de tramela, água pega de carote, fecho de lenha e machado a porta, foice amolada no beiral da cozinha, no cômodo dos fundos um monte de miudezas e a sela da montaria escanchada no prequeiro, moradia certa da felicidade, do aconchego, esse é o castelo no reino do bimboqueiro.
A mata fechada acompanha a grota que roubou dos montes a terra fértil, ali é moradia de muitos viventes, onde o córrego é a estrada trafegada pela rainha do sertão, é lá que Dona Onça faz vigília no vai e vem em busca do comer, por todo lado a passarada, de todo tipo e toda cor, entonando a orquestra, como que louvando o criador, e lá no alto um trio de urubu rei mostrando que mais uma vez a gata deu na criação.
Lugar trilhado de mateiro, paca, cutia e anta, todos de olho no jatobazeiro que já tem fruto pendurado, só esperando amadurecer, um pé de mirindiba mais abaixo é promessa de fartura para o próximo mês, o pau d´óleo beirando a época do florir também vem para reforçar a vida da bicharada, o araçá e um monte mais de fruteiras, lá pra cima na serra no topo do monte os pequizeiros já de folha trocada se encheu de botão, em breve as flores brancas e tenras também vão pintar a paisagem e alimentar o sertão.
Aqui no longe perto, se mostra em primazia a beleza do dia no sol que clareia a bimboca, o cheiro do arroz carreteiro, o banho na água gelada que anestesia a gente, logo compadre chega e vamos dar uma volta, montado a cavalo pude ver melhor a beleza sem fim daquele lugar, a montaria acostumada com o sobe e desce das grotas me surpreendeu, e me mostrou mais uma vez como Deus nos adapta as dificuldades, dando a força necessária para tocar a vida.
Lá em cima da serra, os olhos contemplavam a vida que pulsava naquele lugar, nos berçários de bicho que se formava em cada fundo de grota, mata alta, um ar puro que invadia meus pulmões e um sentimento de felicidade que não tinha tino de explicação, era simplesmente felicidade, esses trem que a gente não sabe nem dizer.
Nesse refúgio de paz e aconchego o tempo parece voar, a boa companhia dos compadres tempera ainda mais o bem estar, e assim logo chega a hora de voltar, sempre a hora da gente ir embora é doida, como diz o poeta, mas fica a saudade, e a paz do lugar que a gente acaba levando um pouco com a gente.
Fica também a certeza, e a admiração por um gigante, por um guerreiro, por um ser forte e desafiador, amigo e parceiro, digno de todo o respeito, o sertanejo bimboqueiro, que tem coração forjado ao fogo das queimadas do cerrado, e que é moldado com todas as maravilhas e adversidades das grotas desse Goiás.
Bello 28-06-2018
MANUEL VITORINO E A ONÇA TREITEIRA
A casa simples de esteio de aroeira, fechada com paredes de barro pisado com palha entrelaçada de bambu, em riba cortando de um lado para o outro a velha cumeeira era testemunha de toda história, ali segurava o mundo apoiando o travessão do palheiro do telhado, na cozinha o fogão de lenha surrado pelo tempo, dividia a atenção com a cacaiada de panelas empretecida que iam apenduradas no pregueiro em um varão de carvoeiro, um arame esticado equilibrava um montueiro de tampas bem ao lado de conchas, colheres e um tanto mais de miudezas entulhadas em latas de querosene ariada de brilho forte, que ele chamava carinhosamente de ferramentas de fazer comer.
Logo ao lado um pilão entalhado em tronco de angico com mão de pau ferro já bem usado, era utensílio de toda manhã no pilar do milho inchado para preparar o cuscuz, bem ajeitado no canto no sombreiro, estavam as cabaças tradadas cheia de água para repor o carote de barro que tinha por finalidade butar friagem no beber para ajudar no matar da sede, vassouras de palha de coco babão encostadas e prontas para o barrer do terreiro findavam o charme do alpendre.
Sobre a mesa de madeira grossa lapidada de machado, um pedaço de bambu servia de socador de tempero e ainda trazia o cheiro saboroso da pimenta pisada com alho e sal para o preparo do jantar, por riba do fogão descansando na fumaça um resto de carne se preservava para o almoço.
A água saltitava no borbulhar do fogo atiçado pronta para virar café, a química simples da semente torrada e moída que se transforma na melhor bebida desse mundo, o café do Goiás, Manuel Vitorino é home de poucas palavras, de olhar manso e voz rouca apenas respondia aquilo que se perguntasse, a calça de tergal surrada, a camisa de botão azul com bolso onde o pacote de fumo pousava junto com a binga, mostrava a simplicidade daquele sertanejo.
Logo o café tava na mesa, algumas xícaras variadas, cada uma de uma cor, umas pequenas outras grandes, a maioria de asa quebrada estava ao lado para nos servir, uma macaxeira cozida acolhida em uma bacia vermelha e arranhada de tanto ser limpa com areia também estava à disposição, derretia ainda soltando fumaça com seu cheiro que bolinava as lombrigas no atinar da fome.
Ele tirou o chapéu surrado pendurou em um chifre de catingueiro que virou cabideiro e logo sentou a mesa, a conversa se iniciou, assunto de bicho só para variar, e logo veio os causos de onça, sobre uma onça treiteira que por aquelas beira se formou em matadeira de criação, e tudo começou assim...
Dos dezessete carneiros que era criado aqui na porta, sobraram somente seis, a onça pegou gosto, ela dava um prazo, mas quando não arranjava nada de bicho do mato para encher o bucho danava a voltar para desfalcar a miúda criação, pelo desatino parecia onça nova, sem muita experiência de caça.
Nessa ocasião queixou-se demais o Dr. Sergio, o fazendeiro de sua divisa, homem labutoso na riqueza e que condenou de imediato a sentença de morte da astuciosa pintada, que com muitas investidas acabou por convencer o velho Manuel a não fincar vingança sobre a pobre e desprotegida gata, afinal a bichinha era uma pobre vítima da depredação do homem que invadiu seu espaço.
O que seu Manuel não engolia, é que o dito protetor de onça, e amigo dos animais Dr. Sergio era justamente o cabra que mais desmatou a região, dono de uma grande gleba de terra, tinha para mais de duas mil cabeça de gado, mata nas terras dele já não existia, o braquiarão tomava conta do mundo rompendo de cerca a cerca até os confins da divisa que batia justamente na pequena área pertencente a seu Manuel.
Mas Dr. Sergio era o tar do ecologista, do cerrado fez carvão para custear a formação do pasto, os bebedores hoje espalhados outrora eram pequenas nascentes, muitas secaram, as que sobreviveram não correm mais, apenas sustentam os pequenos açudes do beber do gado, todas as cercas bem aceradas e todo pasto bem roçado, planta não se atreve a crescer por aquelas bandas.
Manuel Vitorino, homem simples de bom coração, matutou muito no assunto, e como a onça era animal escarço, resolveu encostar a velha 36 e não revidar na empreitada de vingança em riba da gata treiteira, mesmo tendo pouco prazo da sua última marvadeza, a bruta pegou o ultimo e derradeiro carneiro dentro do cercado no beiral da casa, agora criação não tinha mais, tirando umas poucas galinhas sobreviventes da lida das raposas e gaviões que perambulavam no quintal.
Na verdade ele se mantinha de alguns poucos recursos que vinham da capital, suficiente para feira e algumas ousadias, ali era um canto para fugir da agitação da cidade, onde por muitos anos trabalhou de bodegueiro, e alguns anos se escondeu nesses rincões, buscando paz e convívio com a natureza, no quintal algumas fruteiras, uma roça de mandioca e uma horta sortida de folhas e verduras.
Não custou muito e logo veio a notícia que na beira da divisa a gata treiteira pegou uma novilha do fazendeiro ecologista, acho que no aprender de pegar gado a gata bolinou demais com essa novilha, o amassador no braquiária mostra luta comprida e demorada, depois de por fim a vida da vítima, a gata arrastou ela até uma grotinha e tratou de encher o bucho começando pela barrigada e o fígado, os urubus em rodia deu assunto do desatino que logo o leriato chegou a sede da fazenda.
Como a novilhada era farturenta no beiral a gata voltou na carniça somente uma vez, diz que o tal Dr. Sergio fez questão de montar seu cavalo apapelado de raça fina e ir até o local analisar a situação, o capataz de longe apenas fazia a segurança empunhando a precisa papo amarelo, o fazendeiro todo grã-fino vestia roupa de linho e bota lustrosa de cano longo, desapiou e com a mão na cintura ficou andando de um lado para o outro enquanto resmungava a morte da novilha, agachava levantava, abanava o chapéu falando sozinho, mas com pouco prazo pegou rumo de volta para casa de cara emburrada.
Bastião Preto o capataz, era cabra temido, acostumado a dar pressão em qualquer um que beirava aquelas terras, na porteira de madeira de lei pintada de cal destacava-se a placa de zinco escanchada bem ao meio, e com letras grandes na cor vermelha dizia. PROPRIEDADE PARTICULAR, PROIBIDO CAÇAR E PESCAR.
Pescar não sei o que?
Caçar não sei o que?
Já que o rio que corta a fazenda assoreou todo, depois que arrancou toda a mata, estreito e cheio de rassuras nem peixe tem mais, para não ser desonesto sobrou algumas piabas veiacas que ainda se fizem presentes para alegria do pobre Martim Pescador, pássaro pegador de peixe que nunca empunhou anzol nem caniço, creio que é o único vivente que come peixe naquela banda, capão de cerrado não tem mais, mata também não.
Passando alguns dias e chegou nova conversa de ataque da onça treiteira, que pegou mais uma novilhona do fazendeirão, agora mais abaixo no bebedor, comeu bem a presa depois de carregar para uma moita mais fechada, agora pelo batido parece que aprendeu a pegar gado, o amassador no capim foi pequeno e a comilança foi bem aprumada, o capataz vendo motivo de voo de urubu rei logo deduziu mais uma perda e com pouca procura logo achou o resultado da noite de banquete .
Dr. Sergio foi avisado do desatino, segundo conversa de povo alheio conversou pouco, mas mostrou brabeza no falar, Bastião Preto foi incumbido de ordem para tirar a novilhada do retiro da divisa, e levar para mais perto, escolheram o retiro do pequi, área mais limpa, com a ideia de que a bruta evitaria capim baixo para se expor, nada resolveu, com menos de uma semana outra vítima, agora mais treinada na lida de gado branco a gata pegou um até mais erado, aprendeu e ganhou gosto pela carne tenra e vermelha do nelore, a travessura gerou agonia, foi ai que Dr. Sergio deu ordem de perseguição a pobre incriminada onça que por falta de bicho danou na criação.
Agora a gata era bandida, enquanto comia os carneiros do simples Manuel Vitorino era apenas uma vítima, mas ao bulir com o gado do rico ambientalista virou alvo de captura e perseguição, a ordem era de recompensa pela cabeça da rainha do cerrado, mais o que o Doutor não esperava era enfrentar a mais veiaca onça que já viveu por essas brenhas.
Notando o fuxico de gente no vai e vem a bicha sumiu por um certo tempo, mas logo voltou a fazer ponto umas duas vezes ao mês para encher a pança, cachorro treinado veio de longe para buscar a gata, mas a bicha veiaca num deixava rastro para o apurado do faro dos cachorro do caçador responsável por desonçar as terras desmatadas do Doutor ecologista, a bicha a meu pensar vinha lá das matas do Canjica, descia nadando pelo rio que tinha muita rasura, de certo isso explica não deixar muito rastro, trilhava sempre longe das estradas e evitava bater no carreiro do gado, tanto é que não se via rastro dela em canto algum, quando se tinha noticia era mais uma criação morta.
Nessa treita desenfreada em um ano já ia para mais trinta reis abatidas, a morte da bicha agora era motivo de honra para Dr. Sergio, ele veio para ficar na fazenda até resolver esse assunto, com um cabra da capital arranjou veneno para preparar a carniça, dizia se não morrer no tiro, morre envenenada.
Foi quando uma reis foi pega pela gata no beiral da porteira do alagado, a ordem era envenenar a carcaça, matar a pegadeira de criação no veneno, ordem dada, ordem feita, Bastião Preto saiu cedo, e com jeito fez o serviço, no outro dia urubu fazia festa em voo para todo canto, fizeram festa achando ter tido sucesso, mas a onça esperta nem beirou a carniça, o que morreu uns dois raposão, e um monte de vivente que aproveitavam o resto do banquete deixado no pasto pela esperta pintada.
Os funcionários da fazenda conferiram todos pontos de suposta carniça, e nada da onça, mais uma vez a esperta deu a volta pelo lado da pedreira e sumiu no mundo, sei que depois dessa a treita a bicha erou, espertou tanto que aprendeu a comer muito e não voltar mais na carniça, muito esperador perdeu noite de sono em troca de nada, crente em colocar a mão na recompensa pela morte da comedeira de criação.
Durante um bom tempo ela reinou na beira das bimboca, virou lenda e passou a ser tratada de visagem, uns diziam ser o coisa ruim vidado de onça, outros uma mardição contra da natureza contra o Doutor ecologia que nunca preservou nada, era apenas um mentiroso que mentia para si mesmo se intitulando amigo da natureza que ele mesmo destruiu.
O que aconteceu com a gata treiteira a Visagem, ninguém sabe dizer, mas a lenda diz que ela matou para mais de trezentas reis do tar Doutor, e que ao condenar o simples sertanejo Manuel Vitorino de inimigo da natureza por defender alguns poucos carneiros, o tar Doutor mostrou as unhas ao ver seu gado virar comida de onça, logo jogou no ralo sua pose de protetor de bicho e se mostrou da forma mais cristalina o grande predador de vida que era.
Enquanto a grande placa na entrada da fazenda que diz, PROIBIDO CAÇAR, ela só tem valor para quem passa desatento ao que ocorreu por aqui, diz que até hoje o tal Doutor meio desatinado da cabeça ainda faz campana esperando matar a veiaca onça treiteira, a tal Visagem.
Bom, ainda bem que o causo acabou junto com a bacia da macaxeira e o bule de café, agora era hora da gente se embrenhar no mato em busca das fruteiras para a esperada dessa noite, seu Manuel Vitorino, velho mateiro, amava a caça, por isso nunca desmatou suas terras, o córrego que passava ao fundo era límpido e cheio de piaus e piaparas, a serra que corria para o lado oposto da divisa com o Doutor mostrava uma mata exuberante, cheia de umbaúbas, babaçus, gabiroba, ingazeiras, jatobás, tamboril e uma grande infinidade de trem, e só para completar na entrada, em um simples colchete de arame farpado, nunca teve placa nenhuma com os dizeres...PROIBIDO CAÇAR E PESCAR.
Bello 11-01-2019
QUANDO O RIO DORME
Naquela noite havia algo diferente, sentia isso no fundo do meu coração, o ar estava pesado, dificultoso, e uma sensação estranha formigava a cabeça, nem rato bulinava nas foia seca, não se ouvia o canto do urutau, nem tão pouco o coaxar dos sapos ou o cricrilar dos grilos na campina logo após a matinha.
A vareda batida de paca vinha funda do vai e vem das treiteiras, mas nessa noite elas nem saíram, estão enfurnadas de um jeito que nem tiraram as foias secas que tampam a entrada da toca, dona anta também num rompeu, estralo de pau quebrando não se ouvia, até o meleita, o tamanduá miúdo que toda noite passava rasgando os tronco veio caído em busca das formigas num apareceu.
Lembrei até daquele causo que os povo antigo conta, das noites de mata viva e noites de mata morta, creeedo, chega dá angustia na gente, se for se deixar levar por tantas coisas que se ouve, é que a gente acaba por ficar meio desatinado do juízo.
O vento também parecia ausente, a copa das arvores estavam congeladas, até os morcegos que costumavam vir batendo asa no ouvido da gente sumiram, as taguaras estavam imóveis, no céu não havia estrelas, e tudo parecia quieto por demais.
A única coisa que parecia vivo era o rio, o barulho da corredeira ecoava mata adentro, agora com o auge da seca que as pedras estavam a mostra, a água tinha mais força e a espuma branca do seu embolar iam até o poção, corredeira ajeitada de batida de dourado.
Lá no quietar do poço, era ponto de piau erado, o três pinta, das piabona e da astuta piapara, lugar bom para passar o dia na pescaria de caniço a sombra acalentadora da ingazeira.
A lua já brotava clareando a mata e declarando que a esperada chegará ao fim, foi sem resultados, nem mesmo os tatus barulharam no seu vai e vem fuçando as folhas em busca do comer, não veio nada.
Até ai tudo bem, faz parte da lida, tem dia da caça e dia do caçador como se diz por ai, nesses dias não tem o que fazer, é se contentar com o pouso no giral e pegar rumo de casa, mior um péssimo dia de caça que um ótimo dia de trabaio no batido da enxada, porem tinha algo errado.
Aqui nesses rincões que divertimento um sertanejo pode ter compadre, se não for a caça, a pesca, o pito e uma boa pinga brejeira para suavizar o fardo pesado da labuta da vida, aqui nada é fácil, a lida é pesada e muitas vezes sem jeito, tudo é dificuldade, então compadre, tem que ir no mato, senão a gente não aguenta, pode perder o juizo.
Tratei de juntar os trem na capanga e descer do giral, no trieiro estreito vim cantarolando uma moda na cabeça, para desatinar do desapontamento de ir embora sem prenda, sabendo que na lata já faltava carne para mistura.
Para não perder o costume, como o trieiro acaba nas pedreiras do rio, parei para ajeitar um pito e apreciar o pratiadão da lua na campina, onde o gado sem tino com o mundo ruminava o comer do dia.
Ali distraído oiando o moer do tempo, caçei na capanga um garote de brejeira para moiar o bico, era eu o mundo e o ronco da corredeira, já beirava a hora grande, a meia noite, quando de repente senti um trem estranho, um arrepio rompeu minha espinha inté a nuca, e veio um silencio assustador, a corredeira se calou, e o rio parou.
_Cê sabe né compadre, que o rio dorme, num sabe¿
Vovô contava isso e eu pensava ser conversa para assustar menino arreliado, mas lembro direitinho da sua voz mansa falando.
Uma vez por ano, sem marcação de compromisso de dia ou mês o rio dorme, dia e mês num tem como saber, mas a hora, há ai é sempre na mesma hora, a hora grande, a meia noite, mum intervalo breve da porta que separa a noite do dia, é nesse intervalo é que tem a magia dos trem do mato.
Nesse praso parece que inté o tempo para, os redemunho perde folego, inté a cobra grande a sucuiu perde seu encanto, de ter olho de fogo para encantuar suas vitimas, tudo pega sentido da dormência do rio.
Compadre quando o rio dorme o trem queta de um jeito mais estranho do mundo, as águas param de correr, mun cantam mais o barulho das corredeiras, e tudo que vive nela também adormece, vivente nenhum consegue fugir se tiver nas águas.
Mais isso compadre acontece em todo canto, todo rio tem seu mistério, e em todo rio acontece esse trem, é por pouco prazo, trem de segundos, e é nessa hora que a Mãe das Águas abre as portas para que a alma do povo e de todos os viventes que morreram nas aguas pequem o rumo do ceú, ela sobe nas pedreiras e canta pra lua.
E foi justamente seu canto a única coisa que escutei naquele momento, uma voz fina e doce feito o mel da manda saia, ecoava na calha do barranco indo mata adentro, como que avisando a todo vivente que não era hora de beirar o rio.
Se alguma coisa nessa hora acordar o rio, ai o trem desanda, as águas se rebuliçam em uma ira sem fim, imunda as terras e tomba o plantio da roça, fazendo desgraceira.
Já tinha ouvido por demais o povo contar esse causo, mas eu mesmo com esses oios que a terra há de comer, num tinha visto não, era a primeira e última vez que pude ver o rio dormir.
Meu corpo ficou meio que esmorecido, sem força de movimento, mal conseguia virar a moleira para ver as águas paradas, aos poucos só pudia ouvir o cantar da mãe das águas, vi também e o brilho da portas do céu chegarem na mata, de certo as almas deviam descer com a corredeira mundo a fora no leito do rio, foi praso pouco, quando aos poucos a luz foi mirrando e novamente a correnteza voltou a cantar, o rio acordava novamente.
Nesse ponto pequei novamente o controle do corpo e num supetão fiquei de pé, o pito caiu da boca, e pude virar e ver o espumeiro a corredeira voltar a anunciar o movimento das águas.
Bem que o povo retruca esses trem sem sentido, num é atoa não, eu mermo mun creditava nisso, mas pude ver, uma única vez nessa vida, mas pude ver, num gosto muito de falar disso não compadre, pois é motivo de resenha, a gente acaba por ficar mal falado com fama de Zé mentira.
Mas te garanto uma coisa, que o rio dorme, há isso eu garanto.
Bello 13/05/2018
Bello 13/05/2018
DESABAFO
Oia,
eu nasci por essas brenhas, nunca pude ir em escola, não tenho letra, professor
que tive foi a vida, foi a enxada, foi a lida, sou fio de família comprida, tenho
15 irmãos, pai e mãe, toda nossa vida foi ditada pelo trabaio, trabaio na lida
das criação e do mover as terras dessa roça no plantio do comer.
Mãe sempre muito dedicada nos ensinou a ser limpo,
organizado, ela sempre falou pra gente, ser pobre não significa ser baguncento,
nem desonesto, nem sujo, a maior pobreza vem do esprito, papai homem sério e de
pulso forte nos ensinou que homem é homem e faz paper de homem.
Mãe fazia questão, menino meu tem que ter educação,
educação, crescemos na farta de muita coisa mais mãe fazia sempre o melhor
possível mesmo sem as condições necessárias, o alpendre sempre brilhoso de
limpo, terreiro barrido, casa asseada com pano de sol quarado, copo areado na areia fina do córrego tão alvo
que chegava a espelhar, paneril e traia sempre bem cuidado, tudo com seu lugar,
tinha roupa de saída, de casa e de labuta, ia passando de irmão pra irmão e
zelo era mais que obrigação, era respeito pelo outro que ia herdar o seu usado.
Sapato no pé era luxo de pouca ocasião, pai fazia os chinelo
de couro de boi pra gente com sola de pneu, e pras meninas tamanco de pau do
mato, luz era no candeeiro, que por
muitas vezes não se acendia por falta do querosene, ai era pavio de algodão com cera de abeia, comer
era o que tinha na panela, e por maior que fosse a necessidade, pai nunca
deixou de alimentar a gente.
A luta era pesada por falta de maquinário, tudo era no ermo
da força e da enxada, o braço forte que empunhava o machado, o facão, a foice, e
nas rugas expressas no seu rosto pelo sol quente e pelo tempo, estava claro os
anos que a vida árdua lhe roubou, mais nunca
vi, nem ouvi pai reclamar de nada dessa vida, nem tão pouco mãe, pai tava
sempre feliz, e todo dia no amanhecer do dia levantava com o galo, e no café
fazia sua oração agradecendo mais um dia e pedindo forças para levar sua cruz.
No quintal os pé de fruta, a horta, as meninas cuidavam dos
trem de casa junto com mãe, e a gente labutava na lida da roça com o pai, dos
15 fios, oito meninos e sete meninas, nunca vi, nem ouvi desrespeito nem
desaforo de ninguém, pai falava uma vez só, as veiz nem falava, só oiava, já
bastava pra saber o que ele queria, o tempo foi passando nois fomos crescendo
uns pegaram rumo pra capital, as meninas foram casando e eu fiquei por aqui,
junto com João fizemos família onde nasceu e cresceu nossa família.
Sempre fui muito observador e me assustava as vez, ver a
atitude dos povo da cidade, alguns viam sempre por aqui, para pescar e caçar,
na hora de ir embora muitas vezes pai por educação oferecia umas tangerina ou
laranja, ai os cabras limpavam o pé, faltava rancar o trem, e nisso eu fui
vendo que estranha essa mania de ganância desmedida.
Quando esses povo ia pro rio, eles queriam levar todos os
peixes, traziam umas caixas grande com gelo e abarrotavam elas, eu sempre
imaginei que esse povo num era muito certo ou passava necessidade, ou será
estariam por fazer comercio, porque não faz muito sentido isso, a gente aqui,
vai no rio e pega só um peixe pro almoço, uai, senão acaba.
Os que ia pro mato caçar eram do mesmo jeito, queriam matar
tudo, inté o que não era comer, engraçado isso, então pai logo cortou esse tipo
de coisa por aqui, eu que nunca fui em cidade grande não sei dizer, mas acho
que esse povo é meio estranho, num sei se fartou educação, ou se por não
depender da terra, da mata e do rio eles não tem o respeito que a gente tem.
Uai,
se cuidar do que te alimenta não for justo, onde vai ter justiça nessa vida¿
Os bichim do mato tem prazo de cria, se afogar eles sem
prazo logo num vê mais nada, se vai numa esperada, vai no prazo certo, pega o
necessário, e respeita os limite, mesma coisa é o rio, o rio já é maltratado
quando beira cidade, vem carregando lixo, num tem necessidade de deixar mais
bagunça e pegar os peixe tudo, só sei que pai proibiu essa entração de gente
aqui nas nossas terras quando eu ainda era rapaz, e com toda razão, lidar com esse povo sem educação é labutoso, agora somente os
verdadeiros amigos beiram por aqui.
Os verdadeiros amigos num querem levar tudo que a gente tem,
eles entendem que mesmo com fartura de certas coisas é preciso entendimento do
uso, num precisa rancar todas as tangerinas do pé, é demais, inté estraga, num
precisa levar os peixe tudo, é demais compadre, até perde e fica sem gosto no
tal do gelo, e bicho que tem produção curta então é que se deve ter mais consciência
uai.
Oce
é bem vindo aqui compadre na hora e no prazo que você quiser, afinar você é
gente como a gente, tira do mato, do rio e da terra somente o que realmente é
necessário, é aqui que oce faz o peixe e todos comemos, é aqui que oce trata e
prepara a caça onde todos comemos, é aqui que você tem amigos, porque divide e
recebe a divisão, feito a gente.
Nois
da roça num tem estudo, mas somo mais fino que muito dotô.
Palavras
de um sertanejo da região de Cavalcante-GO , um desabafo, uma realidade...
Bello
30-05-2017
LUGAR AMALUCADO
Era tão cedo que inté os passarinho se guardavam aninhados,
quem por motivo de ousadia ainda beirava a barra do dia, era um corujão oreiudo
que no vai e vem do batuque de asa do seu voo desaprumado, fazia uns beira chão
numa lida perversa contra um ratuzim que atravessava a estrada em uma agonia de
desespero de desmoronar coração de gente besta.
Corujão é bicho sem alma, gosta de comer os bichim ainda vivo, parece gostar de ver a agonia da morte nas
suas garras testando a afiação do bico, bicho feioso que pousa num apoio de toco qualquer e
enche o bucho esbugaiando a vítima, nunca
pestaneja os olhos perante a agonia do perseguido bichim sem defesa, que descendo goela abaixo em poucos dias vira
bola de osso jogado pelas estradas.
O
sol preguicento beiçava de longe os beiral da serra sangreando o tição
breuzento da barra da noite, como que mandando
a lua caçar rumo pra embarcada do dia, pela estrada batida de terra eu pegava o
destino do arraial, de pisado manso e oreia quebrada a mula Mulata destrinchava
o caminho lentamente, no corcoveio do vai e vem do seu andado, eu buscando
ponto picava o fumo numa empreita desajeitada, tudo pra mó do fio navalhado do
canivete num fazer ofensa na parma da mão, a palha já cortada ia escanchada nos
beiço no aguardo do fumo sentar no seu colo e virar pito.
Paia
de pito tem que ser tirada do milho novo, tratada no leite por uma dormida,
lavada com jeitinho pra mó de num romper, cortada e secada a sombra, assim fica
fina, de dobra mansa, o fumo tem suas treta também, ser bem enrolado e batido
no pó de café novo fica por demais que cheiroso, fazer o pito. Outra ciença, tem que picar bem o fumo no
corte franchado, de ponto miúdo, ser preparado com apreço, ai sim fica pito
tinhoso.
Nessa base da hora os oio já desgrudava do remeleiro, o dia
já firmava a cor dos trem, e a passarinhada deu fé de aparição, logo um ziguezagueado
de passo preto desmanchou-se em um avoado baguncento dando alvorada, parecendo
combinação no mesmo prazo saiu piando tudo que é trem do mato, inte que o
mundaréu se calou com o griteiro de um par de Seriema que por riba do mourão fez
um dueto estridente parecendo artista de rádio que num sabe cantar sozinho, essas
bicha tão sempre de companhia nas lida treiteira do campo.
No canto do barreiro da estrada, o rastreiro encobrado do
pneu da bicicleta do Veio Pemba dava certeza que triava pingado de bebo da
hibernada no boteco do arraial na noite passada, Veio birrento de teimosia, tá
sempre garrado na pinga e não guarda medo de andar cortando essas estradas na
madrugada, talvez não sofreu ofensa ainda por motivo de santo devotado, por
isso num virou mistura de onça, mas num carece de força pra qualquer dia chegar
causo de desgraça por conta da gata pintada, bicha que no feitiço das suas
treitices some e aparece sem bulinar barulho no ouvido da gente, e vive atraiçoando
o povo pelas estradas.
Gata Pintada é bicha amarguenta, se for preta tem trato com
tinhoso, dizia o finado vigário, faz montaria pro coisa sem prumo, o ruinzeira,
o cabruncho, a gata trilha certa da impunidade do seu mal feito, permanece na aprontação bulinando na criação alheia, vive a fazer
trecho beirando a serra e o grotão na pagiação dos carneiros, talvez por
preguiça da labuta que vive, sempre torando macega de mata ferpenta na espreita
da vara dos sem morada, os porcão de queixo branco.
Acredito nessa treita com o tinhoso, porque onça é bicha
espritenta, some, vapora, desaparece sem deixar piseiro nem motivo, ninguém vê,
se a gente faz aguardo na carniça num aparece, se a gente se omite volta pra
comer, se tem vivente banhado em treita esse vivente é gata de pinta, seja de
pinta parente ou preta.
No pisado da mula a estrada ia se consumindo, o pito agora
já fumaçava no beiço, lá na curva um pau de flor caraíba, amarelava a visagem,
já beirando a florada a mula brecou assustada com o sopro saltento de um veado gaieiro
que desbancou campina afora, bicho arisco da gota, foi embora sem me dar
prazo de passar a mão na carabina que escanchada na sela viajava calada, só
aguardando motivo que enriquecer a mistura, melhor marrar esse trem que fica
num tuc tuc, bantendo no areio e fazendo zuada, barulho besta que acaba levando
estranheza pro esbarro da caça.
Veado
gaieiro é bicho de cisma, hora besta, hora é de uma veiacaria medonha, bicho de
bom espaço no salteio da corrida, trem bonito de se ver, melhor é a campeira, de
toda sorte a fêmea tem aprumo de gosto bom na carne, o macho nessa beira do
ano, tá de catinga pesada, inda mais trem veio, de galha graúda, já tá até de
casco branco de tanto trilhar na lida do sustento por esses campo que agora num
mostra mais o verde, tá tudo esturricado da seca que acinzenta o sertão nessa
época do ano.
Agora
o sol mais arribado e calorento já comeu o fresco da aurora, e indo nesse
pisado manso de mula marrenta o arraial parece ficar mais longe do que já é, a muie
sempre arruma motivo de me fazer ir a venda, inda mais no dia de hoje, dia do
meu descanso, e eu que tinha plano de ir numa esperada de flor calejar o
espinhaço no giral pra me distrair com o cheiro da porvora, essa é a época de
preparar uma boa mateira na banha de porco e miora o gosto da mistura por um
bocado de dia.
Esticada
no cascalho uma baita de jiboia nem deu cabo da nossa passagem, num bufou
raiventa, nem rodilhou caçando briga, parecia dormindo no quentar do sol, lá no
rancho volta e meia tem uma parentela dessa porqueira dando trabaio no terreiro,
estardaiando as galinhas a abandonam o cisqueiro para danar no alarme, cobra
jiboia é comedora de pinto, num cansa de beirar o galinheiro ladroando o que
couber no seu bucho, inda bem que dispois da reza do Sr. Raimundo o rancho não
tá tão cobrento, benzedura contra cobra tem que fazer todo ano, é rezação séria
de caboclo de crença.
No
meio do trote lerdo da Mulata a todo momento ia rebuscando na cachola a
listagem da feira, inda mais quando falta letragem, ai que num carece de carregar
bilhete, tudo que ela falou tem que caber na cachola desse veio que que num tem
mais tanto prumo de lembrança, pra motivo de discórdia ainda sempre acaba
fartando algum trem que fica pra trás, trem de bestagem excomungado pra gera
motivo de desavença na vida da gente, briga com muié só serve pra esfriar o
leito tornando a noite mais longa.
Lá
a frente no plaino da fazenda Ribeira, um rebanho de ema andavam ziguezagueando
na catança dos insetos que sem chance virava tira gosto, trem de cabeça miúda,
parece que num pensa feito os bicho mais treiteiros, lá na campina abaixo do roçado de vez por
outra mato uma, a chocha numa moita
serve de acoito pra espera delas, a cevada é caco de osso, junto tudo que é
osso e elas tão sempre por lá, que gosto tem osso seco eu num sei, mas que elas
são achegada em osso isso são, por ocasião comem tudo que faz brilho, cartucho
veio, caco de louça, num perdoa nada, é bicho de bucho forte, de carne escura,
num faz muito o gosto, mas comer sem a
mistura da carne desagrada muito mais.
Nessa
altura da estrada já dava na vista o cinza brioso do calçamento que cortava o
mundo sem jeito do arraial, as casas de
pintura caiada na alvenaria que formavam um pinta-pinta de cor parecendo jardim
, o moído do barulho agora tomava outra toada, a buia da bicharada, dos canto,
dos assopro ficou pra trás, destoava o roncado do motor barulhento do descascador de arroz, misturado com o
zumbi zumbi do converseiro do povo na feira, a pata da mula agora batia no cimentado,
mulata refugava uma cachorrada que feito bicho besta labutava numa latição sem sentido,
enquanto na loja de moveis uma caixa de som rabiscava um forró anunciando
promoção de tudo que é trem que a gente não precisava comprar.
Na
paroquia as beatas da vila encantovam o vigário num converseiro sem fim, talvez
querendo saber dele quando é que o mundo veio ia acabar, enquanto isso um
rebando de meninos corriam rua afora no rumo da feira berrando feito bezerro
apartado, nesse plano minha mão já ia cansada de estar estendida dando dia pra aquele
povo todo, inte que por final a bodega finalmente fez presença nos oio, mais
que apresado, desapiei e fui cuidar do compras.
Querosene
pra lamparina, sal, prego, martelo, uma pua nova com broca grossa, arroz, uns
metro de chita florida, pano de muié fazer rodado, semente, e um monte de
miudeza de costura, de lida de cozinha, tanto trem que eu acho que esqueci
metade de tanta avexação.
Agora
com os bolso sem cobre o que restava era a agonia de vorta pro rancho, pegar
toda a estra e chegar bem antes fim do dia, com tudo resolvido e organizado no
saco de estopa, finalmente chegara o fim do sofrimento, era só encangar na sela
e romper apresado daquele lugar, pensando bem eu já estou é com saudade do meu
sertão que é lugar ajeitado, eu não me arrancho em movimento de arraial, de
cidade, de montoeira de gente e de barulho, arraial é lugar sem jeito, é LUGAR AMALUCADO.
Obs:
(Esse linguajar criativo e rustico do sertanejo é sem dúvida alguma uma grande
riqueza a ser resguardada, é o que mais me fascina, pois traz o tempero perfeito para as lendas, causos e
histórias desse meu sertão do Goiás.).
Bello
12-02-2017
O MESTRE
O terreiro de terra batida se mostrava em tons marrom
escuro, hora quase preto, característica comum da terra do boqueirão, ali se
destacava a velha choupana, construída na aroeira e no pau ferro, madeira com
quase um século de história, a cobertura de palha de buriti dava o charme da
rusticidade funcional, na cozinha paus entrelaçados formavam um giral onde um
punhado de vasilhas e louça pairavam secando ao tempo, por um bambu aberto no meio a água corria perenemente
vindo direto da nascente para cair na porta da casa, item fundamental pra lida
diária, o fogão de lenha moldado de
argila amassada pelos pés do velho homem estava sempre acesso fumegando a casa
e dando cabo das muriçocas, ao lado uma estante improvisada exibia panelas de
barro com tamanhos variados feitas ali mesmo pelas mãos hábeis do sertanejo e se misturava com os copos de alumínio reluzentes
de tão bem areado dependurados em uma trama de arame.
Mais
à frente uma mesa rustica de madeira lapidada no machado, sobre ela o pote de cabaça
seca todo trabalhado com farinha de mandioca flocada feita ali no terreiro, os
pratos esmaltados de branco e a moringa de água eram os poucos utensílios da
cozinha, atrás um pequeno cômodo com duas camas, todas lapidadas no machado e
pinada na madeira assim como a mesa da cozinha, colchão ali não existia em seu
lugar um couro de boi esticado que fazia o convite para o sono, tudo bem
limpinho, bem areado, bem barido como dizia o velho Zé Preto, no alpendre tocos
cortados eram os bancos onde se sentava para a proza e o bom café.
Em
nossa volta até onde o olho pudesse ver uma mata exuberante cobria o mundo, no
terreiro um jatobazeiro gigantesco parecia tocar as nuvens, o riacho ao lado
cheio de pedras trabalhadas pelo curso constante da água cantava junto com os pássaros
que em algazarra mil saltitavam mata adentro, no pátio batido de terra as
galinhas se misturavam a mutuns e jacus que se aproveitavam da farra do milho
que era jogado logo cedo, um paraíso de simplicidade que adornavam os olhos e
alimentava a alma, acalentando o coração desse aprendiz que traz no sangue o
anseio mateiro.
Seus
olhos cor de mel se perdiam na esclerótica amarelada pelo tempo, parecendo se esconder
em meio as poucas rugas que o circundavam sua face, aquele homem de meia estatura
lembrava nitidamente o preto velho da umbanda, com seus cabelos brancos que emendavam
com a barba rala branquinha feito o algodão, chapéu de feltro, calça de tergal
dobrada até as canelas, camisa de botão meia aberta e pés descalços, no bolso o cachimbo, a paia e
o fumo, o tempo parecia não lhe pesar nos ombros, no auge dos seus 90 anos
lembrava a boa vontade de um garoto no início da adolescência, sempre disposto
e sorridente, mesmo com todas as adversidades que a vida lhe impôs a felicidade
habitava seu semblante.
Seu
sorriso falhado expressava toda sinceridade do universo, com sua voz mansa e
rouca destrinchava seu próprio linguajar sertanejo, herança de gerações
enfurnada nas brenhas das matas unidas e quentes desse Goiás.
Neto
de escravo, herdou parte do seu conhecimento do seu pai, que herdará do avô,
ali três gerações cresceram, ignorando o mundo externo, tendo como fonte de
vida a mata, tendo como inspiração a fé, tendo como líder a necessidade, seu
bisavô fugindo da escravidão buscou o lugar mais difícil que pode entrar e ali
reinou a sua liberdade, um grota , um buraco de mata onde o homem comum se
ausenta e foge, mas que para o velho Pai Preto e para toda sua descendência era
o a maior representação do céu que tanto os jesuítas falavam.
Essa
era a figura do senhor da mata, do homem sem letra, do conhecedor da natureza,
do homem que falava com os bichos, do professor que nas brenhas dessas matas
era Rei, era Mestre, conhecida cada planta, cada casca, cada semente com seu
valor medicinal, sabia a hora da lua e suas fases, conhecia o cantar dos
pássaros e cantava com eles, conhecia a época de cada cria e a treita de todo
bicho, dos insetos e do rumo que cada estrela levava.
Ali
sentado no toco nas noites de luar ele pitava seu cachimbo contando causos,
ensinando a astucia da mata, da lida dos viventes, da época das criação do
mundo, do tempo das fruteiras, dali ele reconhecia o cantar do urutau, do
corujão, do caburé, e de um simples fato saia histórias fantásticas, que
aguçavam a mente da gente, não havia mais de duas palavras sem ele soltar um
boa gargalhada ou um bom sorriso entre uma baforada e outra do cachimbo.
Duro
no andar e bom cafezeiro, não perdia a pose de passar um café adoçado com
rapadura raspada, foi lhe olhando e ouvindo suas histórias é que aprendi que a
felicidade morava a beira da mata, e que meu coração era mateiro, e que meu
caminho era trieiro, não é preciso muito para sorrir, um bom amigo, um bom
causo e uma xícara de louça antiga com a asa quebrada e cheia de café já era
mais que o suficiente para sentir o peito cheio, quase explodindo de eudaimonia.
Ali
era o melhor lugar do mundo, ouvir o Zé Preto, andar na mata com ele, aprender
a olhar o trieiro do mateiro, seu rastro furando a folha seca, seu cheiro na
passagem, a cor do excremento e o tempo que ele passou ali, ver ao vareda da
paca gorda que trilha silenciosa na lua escura buscando raiz, frutos e
sementes, ver o labureto da vara de queixadas que no lameiro fazia rebuliço
feito arado de roça, ali ele ensinava tudo que em noventa anos aprendeu e eu um
menino da cidade com coração de mateiro se maravilhava, e tentava ser um
aprendiz a altura do tão nobre mestre, o Senhor da Mata.
A
carne na lata, frita na banha de porco, o mateiro seco para o arroz, a mistura
tão necessária para a sobrevivência naquelas brenhas, era um homem além do fantástico,
andava descaço para todo rumo, nunca tinha tomado remédio de medico, se tratou
a vida toda com as ervas da mata, nunca tinha visto a luz da energia elétrica,
e se negava a ir a cidade mais próxima a todo custo, serviço que ficava a cargo
do seu filho, a esposa, a Velha Dona Maria companheira que trouxera dos
Calungas estava sepultada no fundo do quintal, onde uma cruz de madeira improvisada
marcava o tumulo, a muito tinha ido embora se encontrar com o criador, ficara ele e o filho mais velho, os outros
dois seguiram carreira nos trieiros do mundo em busca de vida melhor na cidade
e nunca mais deram notícias.
Um
rádio velho a pilha presente de um amigo trazia as modas sertanejas logo ao
raiar do sol, com algumas notícias, isso no dia que ele resolvia funcionar, um
arame esticado no rumo do jatobazeiro era a antena, gado era pouco, cachorro
não tinha, e toda criação tinha que dormir presa, dona onça também fazia morada
naquelas brenhas e nas águas costumava dar o ar da graça comendo uma mula ou
pegando um porco.
Foi
nesse povo simples que encontrei refúgio, no sertanejo que caleja suas mãos na
lida da roça dividindo sua labuta com a bicharada que não planta mais colhe, essa
mesma mão calejada tira o soro do leite e prepara o queijo coalho que derretido
na chapa do fogão de lenha faz minha boca salivar, são essas mãos que colhem a cana e lhe tomam o
doce a transformando em rapadura e melado, esse povo maravilhoso de olhar macio
é o povo que rompe a terra no plantio do milho com o anseio de rechear sua mesa com o cuscuz. O milho assado
ou cozido, a pamonha a festa da colheita, povo que cultiva a mandioca no
terreiro, alimento que vira farinha e polvilho para o beiju, de manhã cedo o
café, uma mandioca cozida bem sequinha e um pedaço de mateiro da lata, um
manjar que muitos Reis nunca experimentaram.
É
nessa simplicidade que encontro a paz, o descanso para minha dor, que acalma o
meu desespero de ter que viver em uma selva de pedra chamada de cidade onde
tudo é frio e cinza, aqui eu não preciso ser o outro, posso ser eu mesmo, sem
regras estabelecidas para me classificar, aqui somos homens, somos mateiros,
somos natureza.
Talvez
muitos não entendam esse nosso sentimento que nos leva as matas, talvez nunca
saberão o que nos faz dependentes dessa lida, mas cada mateiro sente seu
coração gritar e pedir refúgio, o velho Zé Preto já não vive mais, talvez ninguém
mais fale nele, ele talvez não tenha tanta importância para muitos, mas no meu
coração ele vive, foi meu mestre e com ele vivenciei e aprendi, a vida me
trouxe muitos professores mas entre outros mestres não os desmerecendo, foi a
Zé Preto que lhe dei a honra de intitular o SENHOR DAS MATAS.
Com
ele aprendi que um homem não é o que tem, mas é o que faz, com ele aprendi que
sabedoria não é letra, é vivencia, com ele aprendi que amor não é comprado, e
que a honra vale mais que a própria cobiça, que um homem vive quando vive da
maneira que deseja viver, e que todo homem more quando não encontra a si mesmo.
Então
o tempo passou e eu estou ainda aqui, nas noites de lua me sento a contemplar o
céu e relembro e conto as histórias que ele me contou, e ensino ao meu filho o
que ele me ensinou, e vejo em todas essas ações que o velho Senhor da Mata
ainda vive no meu coração, está vivo em cada sertanejo que rompe essas matas,
em cada mutá amarado de cipó, em cada mandioca ralada para o preparo da
farinha, no cantar dos pássaros, no gemido do carro de boi, no ranger do moinho
de cana tracionado pela mula.
São
todos Senhores da Mata, vivendo, aprendendo e ensinando as nobres almas que
amam a lida....Cada sertanejo que formam essa enorme nação traz no falar um
mundo maravilhoso com seus causos e
lendas, com suas treitas e anseios com a plena certeza no coração que um dia também serão chamados de Senhores da
Mata.
(Homenagem
ao velho amigo e mestre Zé Preto falecido em agosto de 1989 com seus 95 anos de
sabedoria ).
Bello
03-02-2017
A
VISITA MAIS INUSITADA DO ANO, O CANASTRA
A estrada de terra batida, que serpenteava a serra outrora
alagada e lameada pelas chuvas, estava agora coberta pelo característico pó
fino e esbranquiçado da estação da seca, pó fino que se levanta empoeirando tudo ao seu redor, é fim de julho e
o frio se misturava a estiagem atenuando o clima desértico do Goiás , o sol
brilhava no horizonte enquanto a tropa se fartava pastando na palhada da última
colheita, vez em quando um pequizeiro adiantando a florada se mostrava com
folhas novas pintando o chão com suas flores branca amarelada, flor carnuda e
cheirosa, mãe do fruto que leva sabor a comida do sertanejo, mais a frente alguns
pequizeiros que ainda nem as folhas haviam trocado, vez por outra o canudeiro
já sem folha exibia sua flor tenra e volumosa, outros já sem flores mostravam
antecedência na florada, flores que
formam o manjar dos campeiros, catingueiros e demais cervídeos , vez em quando
a vista buscava a mata distante, onde a caraíba se destacava ao longe com sua
linda flor amarela, na mata fechada pontos avermelhados também mostravam a
copaíba, o pau d´óleo que trocava as folhas para rechear a floresta alimentando
os mateiros, as pacas, porcos e cotias.
A
natureza não falha na alimentação dos viventes, talvez seja assim de proposito,
uns temporão outros no prazo, outros atrasando, tudo treita da mãe terra pra
não faltar o comer, eu apenas contemplava a paisagem, com a mente vadiando na
futura lida, enquanto tocava o carro estrada a fora ao som da boa música
sertaneja.
sempre
com sua sabedoria, a mãe terra se molda as estações ajeitando a comida dos
viventes que nesse prazo do ano já vem sofrendo no comer, cada detalhe ia me
chamando a atenção, na curva da estrada um baruzeiro exibia pencas dos frutos
que já estavam caindo, Seriemas em trio cortavam a campina com seu andar desengonçado
enquanto o Jeep comia a estrada, eu ao volante declarava que morro de amores ao
meu Goiás, o coração como sempre ansioso
para chegar a porteira da fazenda, pedia para o relógio se adiantar, mas era
melhor ir devagar e ir se detalhando na paisagem que recheava o caminho.
Quando
o poeta se refere a importância da caminhada em relação ao objetivo, ele fala
com profundidade sobre o assunto, a paisagens que mostra os grotões cravejados
de mata fechada, os pássaros empoleirados nas cerca de arame liso em reboliço,
o voo cansado e lento dos Anum Branco, a revoada cor de ouro dos canários, e tudo
mais que enriquece os olhos, mostrava que isso, sim meu amigo, esse é o tempero da viajem e a verdadeira
razão de se estar aqui.
Cada
detalhe dessa lida da vida, é sempre uma surpresa, tudo apesar de conhecido é
sempre novo, e feliz é aquele que consegue refazer o olhar mesmo no que os
olhos estão sabidos de tanto saber, o frio que agora esconde o calor escaldante
do centro oeste, o tempo fresco é convite para caminhada, pra fogueira na beira
do rio na pescada do mandi, pro fogão de lenha depois do banho, pro cafezinho e
para boa proza com os amigos.
Finalmente
a curva da estrada fechada de mata alta mostrava o branco da porteira da
fazenda, logo adiante o gado pastava calmamente, e no velho e seco carvoeiro um
casal de pomba verdadeira namorava em um chamego bom que deu inté inveja, desci
abri a porteira, passei o carro e voltei para fechar, logo uma coruja
buraqueira gritou anunciando minha presença e de longe pude ver meu amigo
Valdir na lida do gado, ali o mundo parou, o que estava para traz não tinha
mais tanto sentido, agora era eu, os amigos e a mata.
A
recepção como sempre foi uma festa, no fogão de lenha a fumaça mostrava que a
galinha caipira estava na panela, o arroz branco, um caldeirão de feijão e uma
quiabada com abobora, papo e risadas tomavam conta do ambiente, o cheiro do
campo agora entrava no pulmão desse mateiro, fazendo meu coração se acalmar,
fazendo minha alma sorrir, fazendo me
sentir em casa.
Logo
estávamos a mesa saboreando o melhor da comida goiana, a conversa ainda fluía
buscando novidades, o assunto, as fruteiras, os bichos, onde andam os porcos,
na varanda um papagaio gritava e cantava feito fiote de violeiro, e toda essa
algazarra se misturava ao cantos dos pássaros diversos que faziam do pomar sua
moradia, compadre animado já dava notícia da ceva, e meus olhos brilhavam de
alegria ao pensar que antes do final do sai já estaria empoleirado aguardando a
chegada da porcada.
Depois
do almoço a rede foi o melhor lugar que eu podia encontrar, o corpo me convidava para uma pestana, a
sombra das mangueiras o vento brincava com as folhas equanto eu fazia o quilo,
agora era esperar o relógio trabalhar
até dar a hora de ajeitar a tralha e rumar para a mata, compadre ali fazendo
sala ajeitava um pito com um cuidado de fazer inveja, com todo carinho do mundo
picava o fumo com um canivete cortador
de dar arrepio, logo puxou a palha do bolso, lasciou bem e deitou o fumo nela,
torcia a palha de um lado para o outro inté que o palheiro tomou prumo de pito,
estendendo a mão me passou perguntanto...
Pito
compadre...
Logo
estendi a mão e pulei da rede, pito bom é acesso na brasa, fui até o fogão de
lenha e ascendi o bruto, voltei fumaçando o mundo e dando arredo pras muriçoca,
compadre riu achando bom, deitei novamente a rede e ali admirando o mundo fazia
caracol com a fumaça ouvindo os causos de bicho que aconteceu pelas últimas
semanas, um saruê tinha se entalado na janela e um bando de capivaras invadido
o açude, e ai a conversa foi longe, o trem quando é bom alivia a gente que vive
em cidade sendo maltratado pela vida urbana que nos consome e nos faz banhar na
tristeza.
Era
hora, um banho gelado para acordar e jogar o ânimo para cima enquanto a água do
café fervia no estralar do fogo, eu ajeitava a mochila, não podia faltar nada,
era preciso revisar item por item, rede, munição, lanterna, facão, tudo certo,
com a roupa camuflada no corpo sai pela porta do quarto rumo a cozinha, passar
o café, encher o cantil, e ajeitar uns pedaços de bolo de fubá para o lanche da
noite, foi quando o ronco da caminhonete me chamou a atenção, junto com o grito
do compadre pedindo pressa.
Sem
muito já estava abrindo o colchete que dava para o fundo da fazenda e ao som da
viola caipira que saia pelo auto falante, seguimos rumo ao rio, a estrada
estreita e íngreme mostrava ao fundo a mata que tanto me fazia feliz, o rio
cortava em tons esverdeado se misturando a multicoloração das arvores que
frondosamente cobria tudo que a vista podia alcançar.
Logo
estávamos a beira do rio descendo o barco, da caminhonete a tralha, motor,
tanque, mochilas e a velha Itajubá 5 tiros, prosa vai prosa vem um café e um
pito antes de subir o rio e ir fazer o que a gente mais gostava, esperar.
Enquanto
compadre ajeitava o pito eu ficava viajando nos redemoinhos que o reboliço da
água do rio fazia com sua brabeza, volta e meia ia engolindo o ar e levando
algumas folhas seca, lá dentro na mata um bando de macaco prego gritava
denunciando nossa presença, o sol ainda alto mas já frio estrelava de brilho a
pedreira exposta pela seca, o pito já ia pelo meio quando dei partida no motor,
enchendo o ar com o cheiro do óleo dois tempo, desapoitamos e subimos devagar,
curtindo a paisagem, pássaros tritillavam para todo lado, e um casal de patão
passou numa batedeira de assa de chamar a atenção, logo estávamos encostando no
lugar que eu ficaria, jóquei a mochila nas costas, garrei na espingarda e dando
e recebendo o desejo de boa sorte, sumi mata adentro.
O
trieiro estreito, pouco pisado ia dar no trepeiro, volta e meia via as vareda
que trançavam a mata denunciando o vai e vem dos bichos, devagar e observando
muito fui chegando na ceva, a visão não poderia ser melhor, estava tudo fuçado
dos porco, sinal que a noite prometia.
Mato
fechado faz a gente molhar a roupa de suor, e suado feito tirador de espírito
logo me arranchei, da rede nas alturas podia ver todo ponto de entrada, atrás
de mim um emaranhado de cipoal, a frente a mata abria um pouco mas logo dava em
um taquaral que cobra ensaboada tinha dificuldade em entrar.
O
sol já ia na barra pincelando a noite quando pude respirar fundo e tacar fogo
no pito apagado pelo vento do barco, agora na rede e em silencio eu me
entregaria a mata, a sua respiração, ao seu canto, a cada movimento, agora eu
fazia parte de tudo aquilo, e me encontraria comigo mesmo, com Deus e com todo
universo.
Devagar
os olhos acompanhavam o vai e vem desconfiado a Jaó, o pular pula do trinca
ferro, do canário da mata, fim de tarde é sempre motivo de festa para esses
viventes, talvez por agradecimento de mais um dia de bucho cheio e de alegria,
aos poucos eles foram se retirando e o breu da noite tomou tento da situação, o
silencio agora era total, hora por outra quebrado por um rato que saia feito
louco saltitando na folhagem seca que cobria o chão.
Cansado
recostei na rede, pela fresta aberta das pequenas folhas do pau d´óleo eu podia
ver o manto negro do céu exibindo o brilho das estrelas, parecendo diamante no
veludo negro das grandes joalherias de Paris , pouco se ouvia da mata, tem dias
assim como dizia o finado Zé Preto, dia de mata morta, dia de silencio, em meio
a um breve cochilar me despertei com uma quebradeira que vinha do taquaral, me
aprumei pensando ser um bando de porcos, mas foi chegando e fiquei sem saber o
que seria.
Hora
estralava pau, hora parecia revirar toda folha seca da mata, e o trem veio
rompendo, pensei, será um casal de antas...
Ai
o trem beirou e pra minha surpresa saiu no limpo, quando ascendi a lanterna um
enorme Tatu Canastra perambulava fuçando a ceva, animal que a muito eu não via,
na verdade nunca tinha visto de tão perto e com tantos detalhes, a velha
companheira voltou para o gancho e eu ali fiquei a me maravilhar com tão inusitada
visita.
Um
animal magnifico, digno de respeito, e que a todo custo deve ser preservado,
homem de moral não bule com esse vivente, seu casco cinza caro com beiras
escura era enorme, acredito que passava dos cinquenta quilos, ali andando de um
lado para o outro sem se incomodar com a luz que o perseguia tentando ao máximo
aproveitar aquele momento, até que cansado da prosa ele deu de costas e pegou rumo mata a dentro, eu fiquei ali,
maravilhado, feliz de saber que o tão difícil e nobre animal ainda lutava pela existência
nas matas do Goiás, ali mesmo fiz uma oração pedindo ao Pai que o protegesse dos
maus intencionados, e nesse enrolo logo a lua beiçou o céu pateando as aguas
caudalosas do Rio Bartolomeu, era a hora de arrumar a traia e subir o rio para
buscar o compadre que esperava mata adentro.
Essa
noite não teve tiro, compadre também não boliu com nada, pensava enquanto
desviava o barco das pedras lapidadas pela água corrente, e que a seca fez
brotar por todo leito do rio, logo após a corredeira já pude ver a lanterna do
compadre dando o aviso da presença, encostei o barco e a prosa foi sobre o
canastra.
Ele
também ouviu a quebradeira, queira Deus que seja de outro, pois assim a
reprodução tá garantida, descemos o rio com o olhar no futuro, e com a certeza
no coração, de que por mais que esses sertões sejam maltratado com o
desmatamento, seus viventes permanecem na luta, com a esperança de perpetuar a espécie.
Muito
obrigado amigo, pela maravilhosa noite, e muito obrigado a mata que me deu a
chance de usufruir da visita do Tatu Canastra.
Bello
27-01-2017
UM MATEIRO MAIS QUE ESPECIAL....
Sr. Nilo não era de chamar atenção, era um sujeito simples,
no molde do sertanejo goiano, de sentido sério, baixa estatura e pele queimada
de sol, estava constantemente ajeitando a posição do chapéu de feltro marrom em
sua cabeça, hora por hora tirava a binga do bolso e reacendia o pito que
teimava em apagar.
Difícil
é ver caipira sem um pito no canto do beiço ou apregoado atrás da orelha, o
fumo de rolo tem que ser picado com carinho e enrolado na palha de milho que
foi escolhida a dedo em meio ao paiol lotado, o trem é feito em cerimônia, que
parece lembrar as procissão da quermesse, o cabra vai longe no feitio de enrolar
o pito
Logo
com poucas baforadas Sr. Nilo foi fumaçando o ambiente para espantar as
muriçoca, desculpa usada por todo caipira quando a gente pergunta porque ele
fuma. kkk
Sr.
Nilo é um homem agradável e como dizia os amigos vivia sempre sorrindo e pronto
para servir no caso da precisão. Não usava roupa curta, dizia que roupa curta
desalinha o sujeito, home serio tem seus desatino de manias sistemáticas.
Vestido
em uma calça de linho clara com a barra desfiada e uma camisa xadrez, ele foi rompendo
a frente, com seu andar firme, mesmo aos 70 anos de idade, com a mão abanando me indicava o caminho a seguir,
o destino era a varanda da humilde casa.
Logo
após o alpendre uma porta de madeira em duas partes dava para a cozinha,
janelas grandes deixavam a luz do sol passar e desenhar formas na fumaça que
saia do fogão de lenha, bem acima aproveitando a fumaceira um ramo de linguiça
caseira dependuradas cheiravam no defumar, uma mesa de madeira rustica com
quatro bancos sem encosto se destacava no meio do cômodo, uma prateleira de
toco recheada de panelas de ferro batido e copos de alumínio bem ariados
chamavam a atenção, na parede conchas e colheres de pau penduradas em um varão,
la no canto bem reservado, um pote de
barro com água, a típica casa sertaneja que tanto me faz sentir alegrias nas
minhas andanças.
Um estreito corredor dava para os quartos onde redes
coloridas corriam de uma parede a outra, logo saímos em uma sala estreita com
um móvel antigo que tinha como adereço um rádio da década de 70, daqueles que lembram
um caixa de abelha, alguns tamboretes na beira da parede, com mais uns passos
logo saiamos a varanda, uma coberta onde dois grandes bancos de madeira nos serviriam
de assento para a tão esperada prosa.
Lá na frente um frondoso ipê amarelo dava cor a paisagem
cinzenta, e um rebando de pássaro preto faziam regaço de festança, enquanto no
terreiro um vai vem de galinhas da angola dava mais brenha no tom de cinza que tanto imperava no terreiro.
Andei longe para conhecer e ouvir a história desse homem
fantástico que ainda ia me fazer romper as comporta dos olhos e acelerar o
coração com seus causos, a estrada tortuosa e buraguenta cheia de colchetes
para abrir e fechar não foi fácil.
Sr.
Nilo se destacava por ser um mateiro habilidoso e extremamente respeitado na
região, seus contos e causos romperam barreiras nos rincões daquele sertão, não
deixava faltar na mistura o gosto da mata na panela, a carne do mateiro, da
cotia, do queixada e da treiteira leitoa listrada, a paca, não perdia um bicho
pena como o Jacu ou a Jaó, mas dava passagem pro refinado Mutum que segundo ele
tinha treita com o dono da mata. Conhecedor das fruteira e flores que alimentam
a bicharada se fez um exímio caçador, a região conhecia como a palma da sua mão,
sabia dos pontos do saleiro natural, dos bebedouros, de cada trieiro de
passagem da porcada, de cada bonequeira, de cada pequizeiro visitado pelos
campeiros.
Gostava
por demais da caça de curso, mas sua paixão estava na espera, passava as noites
na mata e chegava sempre pela manhã com o resultado da empreitada no lombo do
cavalo.
Cavalo
bom chamado Castanho de pisada mansa, respondia as palmas do velho mateiro,
bastava Sr. Nilo bater palmas ele vinha em passos largos, é bonito demais esse
amor entre os homens e os animais.
Logo
que sentamos a varanda, Maria sua filha já chegou com o café que o cheiro tinha
anunciado antecipadamente que estava para sair, um jogo de xicaras coloridas
por riba da bandeja esmaltada de branco formava um desenho bonito, tudo aquilo
parecia estar reservado para essas situações, momentos de visita na casa.
Logo
Sr. Nilo se levantou, abanando com as mão como quem pede um tempo, foi ao
quarto, onde demorou um bom tempo revirando a traia para me mostrar o que mais
amava, quando voltou trouxe um bornal de
pano onde guardava a sua arma desmontada, uma velha 28 em estado de zero, com
cão de orelha e bigatilho, uma peça belíssima de cano paralelo fabricada na Bélgica
e importada pela Henrique Laporte, seu cano de 30 polegadas ainda mantinha a
antiga e bem trabalhada oxidação, a incansável companheira de muitas empreitas
funcionava perfeitamente, logo em sua mão calejada surgiu meia dúzia de
cartucho de cobre recarregados com capricho e prontos para a próxima lida.
Mas
esse homem trazia consigo algo diferente, talvez para muitos difícil até de
entender, Sr. Miro era mudo e surdo de natureza ou como se dizia os antigos, e
como diz o povo de hoje era surdo e mudo de nascença. .... Como então ele era
um esperador ? Sem ouvir?
Apontando
para os cartuchos fez um bocado de sinal, que logo Maria traduziu. Esses
cartuchos estão preparados para um mateiro que vem comendo em um jatobá logo
abaixo da nascente do brejo.
Achei
aquilo bom por demais e abracei Sr. Nilo fazendo sinal de joia, ele sorriu e
revidou com um baita joia mostrando o dedão marcado de carregar cartuchos.
Então
era chegada a hora que eu tinha que parar de pensar e apenas me entregar ao
relato que o velho mateiro estava prestes a me conceder, apoiado em sua fiel
tradutora sua filha Maria, devagar ele danou a gesticular e Maria ia traduzindo
o que ele dizia, ninguém nesse mundo sabia entender o velho Sr. Miro melhor que
ela, cada movimento que ele fazia ela olhava atenta e ia falando, ouvir o que
ele dizia pela voz da pequena morena me fascinou.
Dizia
ele, fui nascido e crescido na roça, moldado por esses rincão dos Goiás, aqui aprendi
a gostar da lida mateira, caçar era o que se fazia, afinal tem que alimentar a
família, meu avô caçava porque aprendeu com meu bisavô, e meu pai aprendeu com
meu avô e eu aprendi com meu pai, e foi mais ou menos assim, é um trem de
família onde o sujeito não pede, não opina.
Como
eu não podia ouvir, aprendi a olhar com o olhar de um gato do mato, mas não foi
o suficiente, tive que aprender a sentir o cheiro do bicho, da mata, tive que
cheirar feito cachorro perdigueiro, e com o tempo também aprendi a sentir o
movimento, mesmo no escuro eu sentia que tinha algo por ali a bolinar...
No
sentido de que era preciso se entregar de corpo e alma pro dono da mata, inté
as vezes fechava os olhos pra mó de sentir o coração do Pai da Mata, e assim
sentia a chegada dos bichos, as vezes perdia, as vezes ganhava.
Mas
não diz o ditado. Tem o dia da caça e o dia do caçador.....
No
começo eu sofri um bocado, só arranjava comer enquanto era dia e os olhos me
mostravam a caça, a noite era tudo paradeira, inté que meu pai trouxe uma
lanterna de pilha, ai o mundo mudou, passei a esperar a pegar bicho a noite
também, e foi assim.
Com
uma linha eu marava no trieiro e ficava segurando na ponta, quando o trem
passava eu sentia o vibrar da linha, mas alguns vivente sentiam e isso não
funcionou muito bem não, ai passei a usar um cipó fino que os bicho já tinha
por costume, mas ai fui me aconchegando com a mata e aprendendo a hora dos
bicho, em cada lua, e assim comecei com
o tempo a sentir no coração a chegada.
Uma
presença na fruteira, é como eu nem sei te dizer, mas eu sinto a chegada, e meu
coração se acelera e o cheiro vem nos meu nariz, e eu sinto o corpo tremer,
devagar acendo a lanterna e na maioria das vezes o trem tá esperando meu dedo
tentar no gatilho, parece até treita do Pai do Céu.
A
menina Maria se esforçava para explicar da melhor forma possível o que seu pai
relatava, com todo sotaque caipira que lhe cabia, e constantemente refazia a pergunta, como que
confirmando o dito, mais uma xicara de café e mais um estirão de prosa.
Sr. Nilo era mateiro apurado, gostava
de andar sozinho, dizendo que apesar de todas as dificuldades nunca passou
apuro na lida, homem de fé trazia no bolso um antigo terço e na esperada
costuma se envolver na oração.
A
vida nos leva e nos traz, as vezes nos maltrata mais nos ensina, e traz surpresas,
porque nos prepara cada um a seu modo e a seu tempo para a sua lida nessa terra,
ser mateiro e trem de nascida, eu poderia ser qualquer coisa mas nunca poderia
deixar de ser o que eu sou. Um mateiro.
O
mato, as fruteiras, as veredas, o cheiro do bicho, cada flor que cai nesse
chão, tudo isso tá na gente, tem que
aprender a sentir o cheiro do bicho, das flor, da mata, tem que respirar fundo,
inda mais nos momentos em que a mata para a brisa e acalma o balanço das folha,
tudo vai pro espirito da gente, e a
gente se torna mata e a mata se torna a gente, que é parte dessa natura, que é
parte desse mundo querendo ou não.
Essa
foi a definição do velho sertanejo, definição que entrou por meus ouvidos e me
fez sentir o coração apertar e os olhos minarem água, Sr. Miro era realmente é um
homem especial, é a prova viva de que o mateiro nasce mateiro, que o esperador
nasce esperador, é um trem que tá na alma da gente, que foge ao padrão comum
das pessoas, que muitas vezes nos condenam sem ao menos tentar entender nosso
sentimento.
É
uma necessidade latente que nos leva ao encontro com o nosso maior e mais
primitivo sentimento, é uma renovação da alma, da mente, do corpo, estar ali
conversando com aquele homem pela voz da franzina Maria foi algo extremamente
maravilhoso e gratificante.
Nossa
prosa foi rompida pelo grito de Dona Regina que já colocava a mesa do almoço, a
manhã passou feito um rápido minuto, e o cheiro da comida estava convidativo, na
panela de ferro arroz branco, e um pernil de mateiro na banha de porco, a
famosa carne de lata, obra do primoroso e talentoso Sr. Nilo.
A
farinha de puba, a pimenta, o suco de limão, tudo tão perfeito quanto a
simplicidade que nos rondava, aquela família, aquele encontro sertanejo,
acompanhado de uma noite maravilhosa com direito a fogueira e a uma boa pinga
brejeira
Foi
um fim de semana inesquecível, Sr. Nilo é uma daquelas figuras que guardarei em
minha mala com carinho, uma pessoa a qual será lembrada em minhas histórias e contarei
aos meus netos sobre suas aventuras, um ser eternamente abençoado a povoar os
contos e causos dos mateiros desse imenso Brasil.
Bello
09-04-2015
FAZENDA PARAÍSO
Zé
Pardo herdou de seu velho pai, que herdou do seu velho avô uma boa faixa de
terras a beira do rio Paranã, herdeiro de uma estirpe de caçadores amava a caça assim como toda sua descendência, e com eles aprendeu a preservar a mata da
fazenda e seguindo o que lhe foi ensinado, bem ao contrário de muitos da
região, em vez de desmatar e destruir a vida da floresta, ele a cada ano que passava se
dedicava ainda mais para cuidar da natureza, afinal para caçar precisava de mata e bichos.
Já
tinha plantado milhares de mudas de arvores silvestres, e todo ano se embrenhava na coleta de sementes para cultivar novas mudas, a ideia era aumentar
consideravelmente as fruteiras existente na mata, a pouca estrada que ia até a
casa simples, local de encontro de velhos caçadores como meu finado amigo
Jorjão, Paulão e outros mais, era bem simples, casa de telhado baixo, sem
energia elétrica, com um frondoso fogão de lenha e a velha mesa de madeira de
lei onde por muitas vezes nos sentamos a nos esbaldar com refeições recheadas
de amizade e bons causos, ao lado uma pequena área aberta para o pomar, pés de
manga para as pacas e cotias que beiravam o córrego, goiabeiras e amoreiras
para os pássaros, e uma lavoura de milho ao longe somente para os catetos e
queixadas.
Lá
Zé Pardo não criava cachorro, já para não espantar com perseguição a bicharada
e como seu avô e seu pai, respeitava a recria, caçando e permitindo os amigos a
abater somente a quantidade necessária para uma boa empreitada, e ali mesmo
junto com a turma preparar a matula e comer o fruto da longa noite de espera,
sempre acompanhado de uma boa farinha, uma pimenta boa e a velha pinga de
engenho.
Na
beira do rio se destacava uma mata ciliar que rompia por mais de três
quilômetros quando se encontrava com o cerradão que aos poucos virava cerrado e
depois abria espaço para as campinas, os trilhos e batidos da porcada era
evidente, pois gado Zé tinha pouco, somente para o leite mesmo, os catingueiros
eram vistos constantemente, os bandos de jacus perambulavam no terreiro e nas
estradas, mais abaixo uma grande lagoa que todo ano era abastecida pelo
generoso rio, trazendo peixes e vida na época das águas.
Os
patão fazia farra, o bando de capivaras ao longe lembravam um complexo de
cupinzeiros, as garças, e o voo agitado dos paturis se misturavam com o cantar
harmonioso da grande diversidade de pássaros que ali faziam morada, na
gameleira ninhos de Guaxo a enfeitavam como se fosse uma grande arvore de natal.
Ali
três geração de caçadores e seus amigos caçaram e viveram bons momentos, e o
lugar mesmo assim era repleto de vida, fruteiras nativas enfestavam a mata,
jatobás, pau d´óleo, mirindibas, tamburil, pequi, e muitas outras, e uma grande
quantidade plantada ali pelas mãos de seu finado avô se faziam centenárias, outras plantadas pela mão calejada do seu
velho pai também se mostravam frondosas, era tanta fatura que a bicharada
procriava bem, era filhotada o ano todo, afinal o alimento e o refúgio seguro
não era problema para os animais.
No
campo antes da formação do cerradão de dia a gente topava com o bando de
campeiros correndo e saltitando, dando abanos com seu rabo branco, por entre os
mais de 500 pés de pequi que foram cultivados a mão humana, por mais de 80
anos, reservatórios de água foram construídos para que os bichos não
precisassem sair da propriedade, saleiros também não faltava, eram mais de 1400
alqueires de terra com a natureza totalmente preservada, campeiro só se abatia
na época certa, e sempre com respeito a quantidade, uma vez por ano uma
campeira era motivo de festa.
As
antas cortavam em trieiro profundo em direção ao saleiro, o bando de queixadas
fazia morada no capão mais fechado do cerradão, o lugar era tão ermo e de difícil
acesso que se chamava Capão do Inferno, e as malocas variavam sua rota entre a
mata fechada e outros rumos onde o alimento era abundante, no nascer e no
entardecer as jaós cantavam de doer os
ouvidos, de tanta quantidade que se tinha ali, e logo essa cantoria se
destonava com o pio fino e cadenciado dos mutuns que também era fartura.
A
beira do rio e no córrego as varedas das pacas e cotias eram evidentes, na
época da mirindiba a famosa piuna, era bonito de se ver a fartura de mateiros,
antas, catingueiros, pacas, cotias, mutuns, jacus, catetos, queixadas e tudo
quanto era vivente, o nome peculiarmente se fazia jus ao lugar FAZENDA PARAÍSO.
Nome
que encantou o jovem Leucadio (o finado
avô de Zé Pardo) ele contava sempre nas conversas à beira da fogueira nas
noites de causos, a saga longínqua da origem da Fazenda Paraíso, seu avô estava
de passagem por aquelas bandas, e quando parou para descansar a beira da lagoa
se apaixonou pelo lugar, a grande variedade de viventes e paz que o lugar
trazia se acalentou com carinho no coração do velho caçador.
Dizia Seu Leucádio pela voz do seu neto, naquela época tinha poucas estradas e cerca era a palavra do dono, um fio de bigode
valia mais que dinheiro, e naqueles rincões do Goiás foi que o velho garimpeiro
encontrou o que precisava, ali ele se sentiu tão bem que parecia estar no Paraíso,
dai a origem do nome da fazenda.
Após
negociar a propriedade fez do Vale do Paranã o seu refúgio, seus contos de
caçadas eram famosos na região, assim como a sua preocupação em preservar a
mata, dizia sempre, caçador que realmente ama caçar, preserva para ter sempre
uma boa caçada.
Ali
durante muitas vezes nos encontramos eu um menino não entendia bem o valor que
ali se guardava, mas o tempo passou os amigos foram morrendo e o velho Zé Pardo
por motivos de saúde teve que vender a propriedade, a Fazenda Paraíso ficava
para traz, e o velho seguia para a maior cidade do Brasil em busca de tratamento,
gastou quase tudo que tinha e sentindo melhora voltou para a Bahia estado de
origem de sua família onde faleceu.
Passou-se
mais ou menos uns 25 anos quando me bateu uma vontade enorme de rever aquele
lugar, então me programei, para a viagem, contatei um amigo na região para
conseguir a autorização para visitar a fazenda, o novo proprietário, que pelo sotaque
era um homem do sul, havia sido bem
receptivo autorizando nossa entrada, o
dia amanhecia quando eu ao volante da velha Variant cortava a estra de terra, quando parei o carro na porteira o sol batia as sete da manhã, e ao descer e
colocar meus pés naquele chão senti vontade de chorar, a fazenda tinha sido
toda desmatada, o trabalho de três gerações de caçadores que reflorestaram e
preservaram aquele lugar tinha sido destruído, somente o velho pequizeiro da estrada
que marcava o ponto do antigo colchete resistia, porem já abatido e sem forças,
suas folhas de verde opaco cobertas de poeira mal podiam respirar, já não existia mais vida naquele lugar, ao
longe uma grande quantidade de gado nelore perambulava no pasto batido de braquiária
onde poucas arvores sobreviveram, abria
a porteira e entrei desolado, estradas cortavam para todo lado, a lagoa não
existia mais, assoreada devido ao desmatamento se acabou, da mata ciliar quase nada sobrou, menos de três metros de
mato separava a lavoura do rio, o córrego também não existia mais, foi drenado
em uma vala que levava água para a lavoura, mais abaixo uma carvoaria
abandonada denunciava o destino que teve todas as arvores da antiga mata, na
curva do rio uma lavoura de arroz tomava conta de tudo, e uma enorme bomba puxava
água do rio para lavoura, que com todo veneno aplicado ali retornava ao rio
matando o pouco de vida que resistia a tanta agressão, a paisagem mudou, nada
mais restava de cerrado e nem de mata, sentei no teto do velho carro olhando o
horizonte sapecado pelo sol e chorei feito uma criança, sai desconsolado
imaginando o que a incompreensão ou a ganancia eram capaz de fazer, durante toda a minha estadia ali,
não presenciei nenhum animal, somente aves, na hora de ir embora parei na
porteira, abri e passei com o carro e ao fechar notei a presença de uma enorme placa
onde ironicamente dizia...
PROPRIEDADE
PARTICULAR, PROIBIDO CAÇAR E PESCAR...
Bello 23-11-2014
ÉTICA DE BOM MATEIRO..(Para ler e refletir)
Segundo Rogerio Araujo Dias

Hoje vivemos dias difíceis, e se um dia a coisa tiver que
mudar tem que partir da gente, mateiros e amantes da natureza, preservar para que possamos ter dias melhores.
1-
O SILÊNCIO – Evitar comentários desnecessários, como
dizia meu mentor ,quem fala o que quer, ouve o que não quer ouvir, principalmente
nas pequenas cidades, pois a noticia tem turbinas, ouvir mais e falar menos é
tido como ato de sabedoria.
2-
O RASTRO – Evite deixar lixo, cortar arvores, jogar
pontas de cigarro, garrafas e itens que possam iniciar um incêndio, pois o fogo
destrói a flora matando animais silvestres.
3- A DOCUMENTAÇAO – Todos os itens devem ser regularmente
importados, com documentação exigida pela legislação brasileira, os produtos controlados
devem estar devidamente registrados, com GT de âmbito nacional, sem
adulterações técnicas de uso ( você estando certo, já é complicado ), porem
estar documentado só lhe garante um transporte seguro, não lhe dá o direito de
caçar o que no Brasil é crime.
4-
DO LOCAL – Somente frequente local devidamente
autorizado, fazendo tudo de forma discreta, procure seguir a risca as
orientações do proprietário em relação do que pode ou não ser feito em sua
propriedade, evitando constrangimentos.
5-
DO COMPANHEIRO – O companheiro tem que ser discreto,
amigo, e ter uma ideologia semelhante a sua, honestidade e bom senso é o
passaporte para uma boa amizade.
6-
DO CARRO – Dê preferência a ir no seu carro, se vai
levar um amigo procure saber antecipadamente se ele está lavando algo errado,
evite surpresas, você pode pagar por um erro do companheiro.
7-
DO TIRO E DAS ARMAS –Tiro somente em local
afastado devidamente autorizado e sem risco de acidentes,. Atirar somente com
ponto correto vendo e identificando o alvo, sempre buscando um tiro perfeito,
amparado por um para balas.
8-
DO PORQUE DE TUDO ISSO – Primeiro se você quer ser
respeitado por onde anda, respeite as regras, as pessoas e os animais.
9-
FOTOS E FILMAGENS – Tirar fotos e fazer
vídeos tem limites, nem todo mundo tem a mesma visão que você tem.
10- DA EXPOSIÇAO NA INTERNET – Expor
na internet somente o que for eticamente correto, pois assim se evita muitos constrangimentos.
11- DA OPINIÃO – Essa é minha opinião, minha ética de
mateiro, cada um tem o direito de pensar o da forma que achar melhor, agir de
acordo com que achar conveniente, passo essas dicas aos amigos sensatos, que
leiam e reflitam sobre o asunto, preserve para que possa ter pra você e para os
que vem depois de você, ser justo é a melhor forma de ter um sono tranquilo, VOCÊ PODE ATÉ TER MAIS EXPERIÊNCIA QUE
OUTROS MAS ISSO NÃO FAZ DE VOCÊ O SENHOR DA VERDADE.
Isso é o que ensino aos meus
filhos e a todo companheiro que inicia a lida ao meu lado, minha idéia aqui é
que cada um possa fazer sua parte para que tenhamos dias melhores, espero que
entendam meu ponto de vista, me desculpando antecipadamente por qualquer coisa.
UM TEMPO QUE NEM O
TEMPO CONSEQUE ESQUECER
A estrada, a cada trecho ia ficando
mais estreita, e os indícios de civilização mais distantes, até que chega ao
limite, apenas alguns trieiros feitos pelo vai e vem do gado, logo a frende
fazia-se frondosa a sombra de um grande pequizeiro era o lugar onde costumávamos
deixar o carro, dali pra frente era só no lombo do cavalo ou caminhando de pé,
mal descemos a tralha já avistamos de longe Zé Preto chegando com a tropa de
mulas para buscar nossas coisas.
Depois das recepções, aperto de mão e
abraços para matar a saudade, acomodamos nas cangas a nossa tralha, e seguimos
rumo a tapera que se encontrava no coração do vale, cercada de matas, rios e
córregos, onde nosso anfitrião cresceu e viveu seus 92 anos , sua família desentendes
de escravos fugiram da servidão e se esconderam naqueles rincões a muitos anos
atrás, Zé Preto era homem rude, sem leitura nem escrita, na sua tapera nem um
rádio ele tinha, vivia alheio do mundo, não sabia quem era o presidente, o que
acontecia na economia , nem que rumo o mundo estava tomando, as horas ele sabia
olhando pro sol, e as estações da lua no contar dos dias, de boca imitava tudo
quanto era vivente, e conhecia os segredos da mata como ninguém nesse mundo.
A tropa descia a serra a passos
lentos, hora outra, parando para abrir os rústicos colchetes que empreguinavam
o caminho, a frente bando de jacus cruzavam o trieiro, e mata adentro cantava o
Choró Boi, saltitando de galho em galho curioso com a nossa passagem , lá de
cima o que avistávamos era o branco da correnteza do rio e um enorme tapete de
mata fechada que sumia aos olhos sem o menor indicio do toque da mão do homem,
como dizia Zé Preto, era a morada do
currupira, lugar sagrado, sem bulição de branco.
Cortamos o rio com a tropa na parte
rasa, a agua cristalina dava volta nas patas da mula que acostumada com o
caminho sabia o lugar certo de apoiar cada passo, do outro lado logo após subir
um pequeno elevado avistávamos a velha tapera, com um tucho de fumaça branca
saindo pelo beiral do velho fogão de lenha, galinha no terreiro não tinha,
apenas o Fiel, cachorro vira lata companheiro e amigo do Velho Zé preto, afinal
os bicho do mato num deixava criação desenvolver, volta e meia as jaguatiricas,
onças e outros predadores desciam a serra em busca de um jantar farto e fácil.
Era incrível ver aquele homem quase
centenário caminhar feito menino, montar e desmontar sem reclamar de dores ou
da idade, como dizia ele mesmo, preto quando pinta de branco o cabelo é porque
passou dos 90 anos. Zé Preto era o autentico preto velho, com sua barba e
cabelo branco e o cachimbo pendurado nos beiço.
Paramos a porta da tapera, descemos a
tralha e tratamos de armar o acampamento ali do lado mesmo, quanto mais tempo
eu pudesse ficar ao lado daquele homem fantástico, cheio de lendas, causos e
experiência melhor era, eu ainda era um garoto naquela época e tudo que fosse
ensinamento eu queria absorver, onde aquele ancião, aquele mestre estivesse, eu
estava ao lado, pronto para ajudar e ouvir suas palavras.
Zé preto vivia ali com um único filho,
dos cinco que tivera somente sobrou João, negro forte de pouca fala, sua
companheira a muito já tinha ido para o encontro com o Pai Maior, e os outros
filhos perderam-se no mundo em busca de trabalho e aventuras, e ele ficou ali,
onde nascera, onde foi criado pelo velho pai e por seu avô, que fugira da
escravidão em tempos remotos, sua casa simples toda de barro, com poucos moveis
e poucos utensílios quase tudo feito por ele mesmo e seus antepassados, o fogão
de lenha, a velha mesa de torras do mato, os bancos de tora de gameleira. Na
parede, por sobre um giral de arames, estavam pendurados os prato branco
esmaltado e alguns copos de lata, as panelas na maioria feita de barro, e a
cama, toras rusticas de aroeira com couro de boi esticado, alguns panos de frio
e o edredom colorido que eu havia levado de presente no ano que se passara.
Tudo bem organizado e limpo, o chão de
terra batida fazia gosto, e o cheiro da fumaça do fogão de lenha se misturando
com o aroma que vinha da mata e do rio, nos fazia sentir como se estivéssemos
no paraíso, afinal, ali nada mais era que o meu paraíso e do meu estimado amigo
Zé Preto e seu filho João.
João logo chegou, tinha ido campear um
gado, na garupa do cavalo apiado em corda de embira, um veado campeiro, que ele
tinha acabado de abater, estava pras banda da planície, onde a vargem,
vegetação rasteira cobria um longo trecho, lugar dos campeiros e da travessia
dos queixadas e onde o pouco gado que tinham fazia pastagem.
Logo apeou do cavalo e fez festa
abraçando a gente, tratamos da prenda com todo o respeito que um animal lindo e
forte como aquele merecia, e nesse ponto o velho Zé já preparava a panela com
água quente para ferventar os miúdos, a banha de porco também já estralava na
panela esperando o filé, para ser frito e fazer um belo tira gosto para
acompanha a branquinha que a um bom tempo não molhava a goela daqueles
sertanejos.
Barraca montada, e traia ajeitada,
agora é comer e bater e prosear inté num querer mais, na parte da tarde sairia
com o João para olhar as fruteiras, alguma mangueira plantada mata adentro na
antiga casa do finado bisavô do João, também estava na lista, a caroçeira de
manga caída da ultima carga, devia de tara mais roída de paca, que a costela do
campeiro pelos dentes do companheiro Anastácio, quem mal falava, somente
mastigava.
Anastácio era major do exercito, e
Sampaio sargento, mas homens simples e bons companheiros, ambos tinham um grande respeito pela minha pessoa,
mesmo na época eu ainda sendo um menino,
pois beirava os 16 anos, já trazia a bagagem de um futuro mateiro de bom
conhecimento e resultados razoáveis.
Após um bom descanso pro comer baixar
no bucho, trocamos de roupas, calçamos a bota de cano longo da cavalaria, facão
na cinta e a velha 32-20, pendurada no ombro pela bandoleira de couro crú
trazida da Bahia. E pegamos rumo.
Descemos a mata beirando o córrego
inte às mangueiras, o trem tava afinado, trieiro fundo batido de paca gorda e
caroço roído pra todo lado, mas a frente, no mandiocal, dois mateiros soprou e
pegou corrida sem dar prazo de pensamento, lá na beira onde o córrego afina e
pega rasura, os queixadas estavam fazendo passagem, entrando no mandiocal, e
depois seguindo mata adentro no rumo das vargens, pois mais acima tinha um
brejo, lugar de lameiro que eles frequentavam toda tarde.
João ia a frente somente apontando e
relatando o horário e o tipo de bicho que tinha passado por ali, saímos a beira
do rio, onde a mata alta escondia o sol, e logo chegamos a um jatobazeiro que
já estava sem frutos e não fazia menção de chamar convidados, rompemos mais um
bom pedaço beirando o córrego, João tinha preparado duas cevas, a primeira tava
uma maravilha, mais pisada do que calçada de rodoviária, e a segunda nem se
fala, empreita resolvida tinha tanta opção que dava para escolher o que iriamos
fazer mais tarde, agora era voltar pra casa tomar um bom banho no rio, ajeitar
a traia escolher o destino da noite e ganhar rumo.
Ainda segundo o João ainda tinha mais
acima já na orla do cerrado, os pés de araticum que espalhavam o cheiro do
fruto maduro atraindo os queixadas e o catetos, sem falar nas antas e outros
apreciadores do seu gosto forte, mas tava de bom tamanho, lugar assim a gente
fica sem saber o que fazer de tantas opções...
Chegamos ao casebre e o cheiro do
feijão plantado e colhido ali a mão fazia o estomago revirar, feijão verde com
farinha e carne de campeiro frito na banha de porco, na mesa esfriava na lata o
restante da carne já preparada, somente esperando para ser tampada, ali estava
conservada durante bom prazo, arroz na panela de barro, um banquete
extremamente cheiroso...
O Velho Zé Preto numa enorme alegria
cantarolava musicas ainda aprendida com seus pais, musicas de origem africana e
ainda arriscava uma dança sacolejando o corpo de um lado para o outro, como
pode um homem de 92 anos que nunca foi em médico ter uma vitalidade daquelas, a
única explicação que eu tinha, era a força da natureza agindo em sua vida..
Corremos cada um para pegar seu prato
e ajeitar o comer, e sentamos um em cada canto, o sol cortava os furos na
palhada do telhado, desenhando riscos na leve fumaça que ainda permanecia na
casa, e entre uma colherada e outra o Zé começou a falar.
Meus descendentes eram reis, dizia
ele, na África muito tempo antes, mas o mal branco chegou, e nosso povo foi
laçado, preso, amarrado e vendido como escravo, nossas mulheres foram
violentadas, outras enforcadas para virar comida de bicho, nossos filhos fracos
de fome morreram na viagem até o Brasil, era isso que vovô contava amigo, a
gente vem de uma família de reis, mas fomos feitos de escravos por um mundo sem
rédea e sem sentimento de gente no coração, mas o pai maior sempre tem reserva
escondida pra mó de acudir a gente, e meus avos fugiram e encontraram esse lugar,
no tempo em que o tempo não esquece, no tempo em que não existia cercas, e que
a terra era tudo de posse do Pai Maior.
Hoje esta tudo mudado, tudo tem dono,
tudo ficou apertado, e gente andou pra tudo que é canto, já estão inté beirando
a gente, essas grota num serve pra cultura grande, é moradia de bicho, e de
difícil chegada e por isso nosso povo escolheu esse lugar, mas o tempo passou
feito enchente de ribeirão e tudo hoje tem dono, gente é trem que num para de
nascer, o povo cresceu tumbém.
Estar ali naquele lugar sagrado,
repleto de vida selvagem e preservado ao extremo era algo maravilhoso, mas
ouvir as historia do velho zé Preto era o que mais me deixava feliz, afinal
imagine aquele tempo em que ele e sua família chegaram ali, imagine o que aqueles
olhos negros e graúdos já tinham visto, o que seus ouvidos tinham ouvido e o
tanto de causos e contos aquela cabeça guardava.
Um dia cedo ao levantar para cuidar da
vida ele se deparou com uma onça pintada deitada no beiral da cozinha se
lambendo como se ali fosse a casa dela, e sem fazer a mínima cerimonia com a
sua presença, apenas levantou e saiu andando sem olhar para trás, e não foi uma
única vez, volta e meia ela aparecia em busca de um leitão quando a hibernada
era pesada e a caça tava difícil.
E as historias de visagem, de trem que
aparecia do nada, de voz que gritava no campo, de gemido de gente na mata
fechada, do assovio alto no ouvido do caçador de espera que desavisado num
ofertava fumo e sal ao currupira.
Do causo da anta branca que nasceu de
um trovão que caiu em um pé de jatobá, e acertou uma anta amojada, e fez ela
parir um fiote branco com brilho de luz, e que perambula pela mata a mando do
Pai Maior abrindo trieiro pra salvar caçador perdido, e muitas outras historias
que povoavam sua mente sertaneja, mente de um homem quase centenário, bisneto
de Rei Africano que foi feito de escravo, homem de pulso forte, que nunca tomou
remédio de médico, e que viveu toda sua vida do que a terra produziu, dos
frutos da floresta, da carne de mateiro, de queixada, de cutia, de paca ou do
que o Pai Maior mandar para a mistura, gente humana e simples que cativa com
amor verdadeiro aqueles que cruzam seu caminho.
E a conversa se estendeu inté as três
da tarde, batendo a hora de ganhar destino, de ir para a espera, tudo ajeitado
e pé no trieiro, cada um após escolher seu rumo, trataram de cuidar da sua
empreita, marcando horário de encontro logo após a saída da lua, na ponta da
cerca velha, escolhi a entrada do mandiocal, pois tudo que é trem fazia trieiro
de passagem por ali, beira de córrego, passagem de paca, mateiro, cutia e
outros trem mais.
Num ipê amarelo, ajeitei a rede, subi
a traia e limpei o suor do rosto, e me acomodei. O sol começava a esfriar
quando uma algazarra rompia a mata do outro lado do córrego, o bando de
queixadas vinha rebentando tudo, ora parava ora rompia, sem ligar para o que
tinha na sua frente.
Ali não precisava ter agonia, tinha
trem pra escolher, como eu estava meio longe do ponto de encontro achei mais
conveniente deixar os queixadas passarem, e esperar a noite para tentar a sorte
em uma leitoa pintada, pois tinha a plena certeza que meu companheiro não
perdoaria a vara de queixadas passando no seu trepeiro, campeiro a gente já
tinha almoçado, queixada o companheiro iria se encarregar dele, e eu, me
empenharia numa boa paca, que fazia trieiro ali rumo a mangueira repleta de
caroço, seu manjar preferido.
Não demorou muito quando tudo
escureceu, era porco pra todo lado, acredito que uns 90 a 110 porcos, que
passavam rápido, uns bestando outros atentos, os queixadas andam sempre
estressados, pois são perseguidos diuturnamente pelas onças, comida preferida
da gata eles e os catetos, eram tidos como trieiro de gata.
O sangue correu rápido, a boca azedou,
e as pernas tremeram, o dedo ficou coçando no gatilho da 32-20, mas eu já tinha
feito minha escolha, subir um grotão daqueles com um queixada criado nas costas
junto com mochila, armas e tralhas não era meu desejo naquela noite, eu queria
mesmo era ouvir a vida do mato, o caminhar dos bichos, o canto fino e repetido
do mutum, o pio da jaó, o reboliço dos jacus, ouvir a pisada agoniada da cotia,
a buia mansa e calculada do mateiro, o
romper cauteloso da paca gorda.
Queria sentir o cheiro da água que
corria no córrego, sentir o cheiro da mata, ver o voo subindo e descendo do
pica pau rei, com seu topete vermelho, ver o malabarismo do soldadinho catando
insetos, ouvir o cantar da saíra sete cores no romper do dia, o toque-toque do
pica pau louro um dos mais elegantes da família se banqueteando das larvas
criadas das arvores mortas.
O sol foi-se distanciando aos poucos,
e a noite veio com seu manto negro
escondendo a luz que me faziam enxergar, logo tudo escureceu e a mata
mudou de tom, os diurnos foram buscar seu aconchego, os macacos pregos gritavam
ainda ao longe ajeitando a dormida, agora Dona Onça, se espreguiçava a beira da
toca, Dona Paca colocava o focinho pra fora do buraco, os mateiros levantavam
das suas cama e caminhavam sorrateiros por entre as árvores fazendo sua rota
entre as fruteiras, os marsupiais, perambulavam pelos cipós, e os pequenos
roedores corriam com sua imperatividade constante, volta e meia o tatu 15
quilos revirava folha mato a dentro em busca de larvas.
A mata tomara vida, logo o pisar
pesado e trotado da anta desceu a serra, passando sem dar assunto a qualquer
vivente, inté Dona Onça evitava bolir com ela, bicho bruto rompe tudo sem
respeitar nada, risco certo para a rainha da floresta que preferia negacear os
pobre queixada, ou os pequenos bando de
cateto, comida farta e mais fácil de conseguir.
Logo uma buia mansa veio, pulou no
córrego e nadou para outra margem, já tava com ponto de mira, assim que subiu o
barranco acendi a lanterna e anestesiei a bruta, que passava dos dez quilos,
era cedo, beirava as 8:40 da noite, não queria descer pra pegar a prenda, deixa
isso pra hora de descer, conferi ela direitinho, tava com o branco da barriga
virado pra cima, afinal um tiro de 32-20 é de lascar, então pendurei a arma, deitei na rede coloquei os
pés para cima e me puz a olhar pelas frestas das folhas o brilho das estrelas,
não demorou muito quando a 20 cantou lá pro rumo dos
companheiros...Buuuuuuuuuuuuummmmmmmmmmmm....
Pensei, pobre queixada, amanha tem
pernil assado no almoço..kkk
As 9:30 a lua feito bola de fogo pontava
no canto da serra trazendo sua luz e encurtando a caminhada dos bicho, tava na
hora de baixar a traia e subir a grota para o ponto de encontro, com a prenda
na mochila e tudo ajeitado subi o trieiro cantarolando, estava feliz, o que
contava ali não era o resultado da empreita, mas o prazer de estar na mata, de
estar com aqueles companheiros, da farra, da prosa, do calor do fogo.
Logo a frente avistei a lanterna do
Anastácio, e Sampaio já vinha lumiando por outro lado, pelo bater da caminhada
carregava trem grande de bom peso, Anastácio, treteiro de mato, escolheu uma
queixada fêmea e pequena, carne boa de pouco cheiro e leve pra carregar, mais
depois de um bom tempo Sampaio pontou no trieiro com uma bruta mateira nas
costas e um sorriso que se estendia de uma orelha para outra, nem escutei o
estampido do seu disparo estava com uma 22Lr, boa força e pouco barulho, foi
uma farra danada, um arrancando o couro do outro, precisávamos descansar um
pouco antes de seguir viagem.
Sampaio estava todo feliz, afinal era
seu primeiro mateiro, e como diz o ditado dos sertanejos, um homem só se faz
caçador depois que pega um mateiro na espera, bicho esperto, de andado manso e
pisada calculada, que passa despercebido por esperador experiente, que escuta e
sente cheiro feito ninguém, é bicho tinhoso, pra quem tem ouvido apurado, que
sabe ficar quieto, que respira manso e se movimenta sem motivo de barulho, o
esperador tem que ser astuto inté na hora do luniar, tem que acender pra cima,
ir baixando devagar, com lanterna de foco brando pra mó de num espantar o pisa
leve...
Ai os dois me olharam e perguntaram..
_Uai, num pegou nada não....
Não errei o tiro, bicha treiteira,
andava dentro das macegas, e num deu prazo de boa mira, ranquei caspão dela, e
ela sumiu no mundo sem olhar pra traz...kkk
Mas Sampaio cabra esperto, já puxou a
mochila falando...
_Oia ai, a paca ta dentro da mochila,
larga de ser resenhista home, ta querendo enganar a gente, e caiu na
gaitada..kkkkkkkkkkk.
A minha já estava desfatada e sem
cabeça e a do Anastácio também, então ajudamos o Sampaio a limpar a mateira
para diminuir peso, afinal, a lua já clareava o mundo e cortava as frestas da
mata, mostrando toda sua silhueta, e íamos descer juntos lado a lado descampado com destino ao
acampamento, que estava mais ou
menos a uma hora de caminhada ao norte,
então reduzir peso era a melhor pedida.
Chegamos no pouso era quase meia noite
e a fogueira estava acessa, fritamos o
fígado da mateira e caímos na pinga e na proza o veio Zé acostumado a dormir
cedo acordou com o fuzuê e veio se juntar ao bate papo, João nem colocou o
nariz na porta, de longe a gente escutava o ronco dele barraco a dentro.
Acordamos cedo com o cantar dos
pássaros, mais um dia começava no paraíso de Zé Preto, mais no nosso coração o
aperto já começava a doer, afinal era o ultimo dia da nossa estadia, tínhamos
mais uma noite de empreita, e no dia seguinte seguiríamos com a tropa rumo a
caminhonete, com destino a cidade.
As coisas boas da vida são assim,
passam rápido demais, pro isso temos que saboreá-las ao poucos, com muito
carinho, são pessoas e lugares que muitas vezes nunca mais tornaremos a ver,
cada momento mágico deve ser sagrado, guardado no coração com grande
satisfação.
Os companheiros bom de lida, devem ser
preservados, já os soberbos, arrogantes e preguiçosos devem ser evitados, no
mato o sentido é acabar com o stress, com
o aborrecimento da cidade, e não para passar raiva, portanto companheiro
tem que ser escolhido a dedo.
O cheiro do café rompia o mato batendo
no nosso nariz, carne de mateiro na lata, pão, macaxeira e banana da terra
cozida, pense...Enquanto isso Sampaio temperava o pernil da queixada para colocar na brasa e o
Zé preto ajeitava a paca em duas bandas com alho e sal para moquear na fumaça
do fogão de lenha, tinha que tratar de tudo pois o gelo era pouco, era fritar
tudo na banha de porco e colocar na lata.
Hoje não era mais dia de sair pra
esperar, afinal as latas estavam cheias, era passar o dia assando carne,
comendo e tomando banho no rio, a noite quentar no fogo, assar uma banda da
leitoa, contar causo e cair na rizada, são momentos assim que valem a viagem,
momentos de descontração que ficam na mente da gente e viram palavras escritas
como estas que estou escrevendo agora.
O dia amanheceu e depois do café a tropa
de mulas já estava pronta para subir com a nossa tralha, dia marcado de volta
já tava certo, era o Zé Preto contar os dias, na próxima lua dizia ele, na
próxima lua, traia arrumada nas cangas, pegamos rumo do carro, devagar passo a
passo, de vez em quando olhava para traz, com vontade de ficar.
Tudo na vida tem um preço, já dizia
meu amigo Antônio Carneiro, e viver na cidade tinha um preço caro, porque toda
vez que eu saio da mata, meu coração chora, meu peito se aperta, coisa difícil
de explicar, acho que eu deveria ter nascido a uns 100 anos atrás, deveria ter
sido, um vaqueiro, um homem do campo, os
momentos vividos ali serão amados para sempre, e contarei as historias aos meus
netos, quando estiver velhinho sentado em uma cadeira de balanço.
Um homem tem que ter aventuras em sua
vida, tem que ter história, tem que ter tutano, como dizia os antigos, a vida
não pode se basear em um trajeto de casa para o trabalho, do trabalho para
casa, eu graças ao Bom Deus vivi e vivo minha vida ao extremo, e tenho historias
e mais historias dentro da cachola para contar....E agradeço todos os dias ao
Bom Deus por isso....
Bello 28/12/13
Parabéns Bello vou estar sempre acompanhando seu blog.
ResponderEliminarValter Jr Minas Gerais.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarObrigado amigo...
EliminarMuito bom!!!!
ResponderEliminarParabéns Meu querido " IRMÃO "
Virou minha literatura de cabeceira.
Muito bom lembrei de amigos que fiz em minhas viagens lida, realmente as pessoas ribeirinhas que vivem na mata são muito boas .
ResponderEliminarta ai um causo que me fez chorar. Quando saio da mata é exatamente assim que me sinto.
ResponderEliminar" e viver na cidade tinha um preço caro, porque toda vez que eu saio da mata, meu coração chora, meu peito se aperta, coisa difícil de explicar".
Gostaria de agradecer a todos pelos comentários e dizer que me sinto muito feliz em estar produzindo, e vendo que meu trabalho está surtindo efeito, e saber que mesmo escrevendo como um amador os amigos tem gostado do resultado.....Um abraço a todos;;;
ResponderEliminarComo mais um causo de tirar o fôlego venho saudar e admirar sua vivença. me fez lembrar de um irmão que tive pros lados de Januária, noroeste de Minas. As margens do rio onde morava, tinha fartura e muita festa qdo nos encontrávamos.era mesmo um grande irmão sertanejo.
ResponderEliminarO que me faz feliz e compensa as noites em claro a escrever é saber que o trabalho tem sido reconhecido, muito obrigado, ajudem a divulgar o blog por favor...Abraço.
EliminarParabéns pelo blog Bello, seus causos são tão ricos em detalhes que é possível imaginar-se no meio da estórias!!! Espero que continue postando sempre, pois leitor assíduo de seu blog!
ResponderEliminarVocê é um excelente escritor, parabéns pelo blog e pelos textos!!!
ResponderEliminarQue blog lindo amigo!!!
ResponderEliminarObrigado por compartilhar todos esse causos com os amantes dessa vida.
Continue enchendo nossas mentes e pensamentos contando essas histórias maravilhosas.
Já estava agoniado Bello... todos os dias entrando no blog para ler causos novos.
ResponderEliminarNossa, incrível a história do Sr. Nilo, Deus realmente ajuda quem nele confia...
Mais uma vez, parabéns pelo blog, já li todas a histórias várias vezes.
Um forte abraço.
Aí sim, como nos faz falta seus textos amigo, obrigado por compartilhar conosco esta filosofia de vida que tanto amamos.
ResponderEliminarShoww de desabafo amigo, pura verdade, simples, dura e inevitável para a ganancia desenfreada da humanidade nos dias atuais.
ResponderEliminarShow belo vc é o melhor poderia nos escrever mais. É fascinante vc tem algum livro pra venda.
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