CAUSOS E CONTOS

INFARTO NA ESPERA - O FANTASMA DA FLORESTA





INFARTO NA ESPERA
 ( Causo baseado na história contada pelo amigo Marcos Silva)

Esse causo se passou na região (Capivari-Rafard) há muito tempo atrás, um bom tempo! Tempo em que as matas eram fartas, tempo em que havia poucas estradas, poucas lavouras, e a fauna era abundante, tempo em que o campo florescia com a vegetação nativa e que a população era de pouca gente,  a flora bem diversificada trazia sempre surpresas em flores coloridas e em fruteiras carregadas, de longe se via as cores viva das borboletas e se escutava o zumbido da jataí em busca de néctar. Nesse tempo erm muitos os  motivos de contos e causos, de visagem, de aparições do currupira, das esperas e das campanas de curso....
Ali era lugar retirado, de mata fechada, de arvore alta de copa cheia, cortadas por córregos e brejos onde os queixadas faziam passagem e morada, onde o mateiro pisava manso nas madrugadas em busca das fruteiras, lugar repleto de vida, ponto cobiçado que povoava a mente e os desejos dos mateiros da região, pois a fama ia longe, de se encontrar naquelas brenhas de mata os melhores “paqueiros” da região.
Amigos de longa data e parceiros das empreitas de pescadas e caçadas, Paulo, Gilberto e Lidião, estavam  sempre juntos, Paulo e Gilberto bons atiradores, contavam proezas de tiros distantes e acertos impossíveis, já Lidião, mateiro e mestre no facão se garantia no mesmo, não se contavam as vezes em que durante as pescarias, ele saia dar uma volta campeando os chapões , acompanhado pelo velho facão companheiro de lida pendurado a cinta, e retornava com um ou dois tatus, garantindo na refeição uma mistura saborosa.
Beirava a época das fruteiras coalharem o chão chamando a bicharada para o banquete,  era a época certa da espera de paca, respeitando a procria,  então juntaram-se os três amigos para combinar uma espera, depois de muito conversar e acertar os pontos marcaram o dia da saída.
            Na farra do caminho  regada ao som da boa musica sertaneja os três amigos contavam causos, e proseavam em meio de fazer inté aposta pra ver quem pegava a maior leitoa, chegando na mata se dividiram para procurar e escolher o local certo da espera, cada um para seu lado embrearam mata a dentro conduzidos pela cheiro adocicado da mirindiba que pintavam de amarelo e laranja as folhas secas da mata fechada, volta e meia um pio de Jaó, outrora um voo de um jacu, e assim se foi até o meio da tarde.
            Matula ajeitada, água no cantil e espingarda no lombo, romperam para o ponto escolhido, mirindiba graúda de muitos galhos e triada a ermo de todo lado por tudo que é trem que anda no mato. Lidião sabidamente que era péssimo no tiro escolheu o poleiro do meio, enquanto Paulo ficou um pouco a baixo em outra arvore de olho no trieiro que vinha da grota,  e Gilberto mais a direita onde se estreitava a mata.
O dia já caminhava longe deixando o véu escuro da noite chegar, o sapo começou a cantar a beira do córrego que cortava a mata e de longe os jacus faziam algazarra procurando o poleiro da dormida, e logo, logo o silencio chegou, de longe vez em quando os grilos resolviam alegrar a solidão da noite.
            Não demorou muito quando o estrondo do ronco da espingarda de Lidião rompeu a mata feito trovão em noite de chuva braba, a fumaça tomou conta do ambiente alastrando o cheiro da pólvora para o nariz do fiel esperador, sua boca azeda da ansiedade da pisada da leitoa e sua espinha arrepiada denunciavam seu estado de espirito.
            Focando a lanterna Lidião pode ver o branco da barriga da paca por entre as brechas das pequenas arvores que cresciam no chão da mata, contente, apagou a luz, olhou pro ceu, tentando matutar em quanto tempo a lua ia demorar pra sair.
             E ali na imensidão de verde, sorriu sozinho, sentindo o coração aos poucos voltar ao ritmo, a tremedeira estava controlada, um gole de agua da fonte, e um bom bocado de farofa para esperar a lua sair, sua espingarda já estava pendurada, a regra era sempre um único exemplar, preservar para se ter sempre, e os ouvidos buscavam atento, escutar o estampido do tiro dos companheiros.
            A hora passou e nada de tiro, e lá por trás da serra uma bola laranja,  foi surgindo clareando o céu, dona lua linda e majestosa, parecia um grande balão de festa junina.
            Então Paulo e Gilberto desceram e correram de encontro ao amigo, doido pra ver o que Lidião tinha abatido... Isso é se num tinha errado e deixado a prenda ir embora, para surpresa logo deram com o resultado da empreita....Era uma Paca  linda! Gorda! De uns 9ou 10 kilos... Logo Gilberto gritou, é uma fêmea enorme! Todos comemoraram e parabenizando o amigo Lidião,  que todo prosa descia do puleiro com toda banca de experiente esperador, dizendo.
            _ Tava no papo, nem esquentei..
Doidos para tomar uma e tocar na panela o tira gosto, ensacaram a bruta sem fazer exame, e pegaram o caminho do carro, e durante todo o caminho de volta foi uma resenha danada sobre o feito do amigo Lidião que estava tão cheio que mal cabia em sí mesmo, chegaram na casa da fazenda e lascaram lenha no fogão levantando uma boa lavareda, para esquentar a água para rasparem e limpar a paca, enquanto a lata cheia dágua esperava a fervura, uma boa dose de pinga para comemorar o feito.
            Tiraram a prenda do saco, e penduraram no alpendre esperando a água ferver, com todo respeito que o animal mercê  danaram a examinar a bichinha, logo veio a encabulaçao  ....
Não havia furo de chumbo, nem um buraquinho, nem sangue nem nada......
Ai foi o fio da meada, pegaram pesado no pé do velho Lidião....._"O tiro deve ter pego um metro antes dela!!!   Inté imagino a terra e as foias cobrindo ela!!!    Ela morreu infartada!!!"_  Afirmou o Paulo Bial!
 Daí por diante não deram trégua para o coitado do Lidião e até hoje ainda tiram um bom sarro dele, visto que ele está no auge dos seus bem vividos 80 anos,  aceita muito bem a brincadeira sadia dos amigos!  E ainda estufa o peito dizendo, enfartou porque sabia que era eu que estava no poleiro e a morte era certa..kkkkk..................
Esta e muitas outras "histórias" são constantemente contadas aos seus filhos e netos, com o intuito de preservar os bons costumes da caça consciente, da preservação da fauna e da flora em suas temporadas de procriação, respeito a piracema e a natureza.........
Essa é a história desse trio de grandes  amigos de longa data! São pessoas reais, que viveram num tempo em que; se quisessem melhorar a mistura em casa, tinham que pernoitar na mata, caçando ou pescando, buscando aventuras e guardando na maleta bons causos e histórias para contar para os filhos e netos...
Bello 17/12/13



















O FANTASMA DA FLORESTA



Bem longe da orla da mata, onde a campina predomina, a estrada de terra batida cortava singelamente por entre a savana brasileira mostrando seus moradores, volta e meia  os campeiros disparavam em saltos fenomenais, com o rabo levantado, parando logo a frente, para olhar o carro e tentar entender o que acontecia, a perdiz, geralmente solitária caminhava apresada, cortando a estrada, e desconfiada logo levantava voo, estalando suas assas pelo ar.
Pruuuuuuuuuuuuu...
Ao longe podíamos ver muitas emas caminhando devagar e cutucando o capim em busca de alimento, no céu  a pomba verdadeira passava em seu voo rápido e direcionado no rumo da mata, o caminho estava repleto de vida, e isso animava meu coração e levava alegria aos meus olhos de adolescente..
Depois de rodar por mais de 90 km de estrada de chão, por entre cerrado aberto e cerradão, pegamos um trecho de mais de 20 km de campinas abertas antes de ver o cerrado começar a engrossar novamente, lugar ermo sem prumo de gente, a ultima moradia já tinha ficado para traz pra mais de hora de viagem, mais abaixo, a mata ganhava corpo em arvores centenárias, que ultrapassavam os 20 metros de altura, estávamos chegando a alma do sertão dos Goiás.
Esse Goiás tem lugares surpreendentes, que fogem a imaginação e que enchem os olhos da gente, fazendo povoar nosso imaginário com lembranças e anseios por longos anos, uma mistura de biomas e biodiversidade fantástica.
A estrada, os bichos, os amigos e tudo mais, esse lugar é feito o paraíso, que nem mesmo o romper da idade consegue fazer a gente esquecer as suas maravilhas.
Os rastros na estrada indicavam o vai e vem dos bichos, e na beira da mata, dois pequizeiros se destacavam pelo tamanho, ainda estavam repleto de fruto que pintavam o chão com seu fruto de cor laranja, ali era passagem dos cervídeos, tanto mateiros, como campeiros e catingueiros, a mesma estrada que denunciava sua presença, também tinha registrado o caminhar de um casal de onça pintada que descia no rumo dos pés de pequi.
Paramos o carro em uma boa sombra, a estrada acabava ali, agora era descer e abrir caminho no facão e na foice até a boca da mata, mais ou menos um 500 metros abaixo, o sol já fazia força no céu, e o suor corria no rosto, depois de muita luta chegamos, devagar fomos descarregando a tralha e ajeitando o acampamento, o lugar escolhido dentro da mata fechada e a beira de uma nascente de agua fria e cristalina, era mais que perfeito.
Anastácio logo providenciou um grande giral para colocar a tralha de cozinha, enquanto Calinhos foi encabar a enxada para deixar o chão bem nivelado para armar as barracas, eu e Jorjão caímos no fação e na foice abrindo carreiro até a nascente onde lavaríamos a louça, devagar fomos ajeitando o que mais era preciso.
Esticamos a lona da cozinha bem esticada, e mais duas lonas para as barracas, era preciso ajeitar as coisas de forma a aquentar uma boa chuva, pois ainda estava na época das águas, fim de fevereiro e inicio de março, e até o dia de São José ainda era certo que as nuvens banhassem o sertão, valetas foram abertas nas laterais para escoamento evitando que a enxurrada entrasse no pouso, tinha que ficar muito bem estruturado. Um bom mateiro deve de ser sempre precavido, dizia Jorjão.
Após uma rápida organização, logo cada um tomou a tarefa que era necessária, afinal bons companheiros são assim, não ficam esperando pelo o outro, faz o que tem que fazer sem esperar pronuncia de ser mandado.
Carlinhos e eu tratamos de moldar um fogão de lenha com pedras e argila, para o apoio das panelas uma boa tremp, ainda tinha o defumador e a mesa para preparar, então aproveitamos para usar a motosserra e tirar boas toras antes que Anastácio e Jorjão  saíssem em busca de lenha, pois era necessário acumular e preservar a lenha da chuva, em uma quantidade suficiente para a estadia de 23 dias.
Entramos mata adentro em busca de toras para fazer o defumador, e com a experiência de velho mateiro, Carlinhos logo ajeitou o defumador que ficou de bom tamanho, dando 1 metro de comprimento, por 60 cm de largura e uns 1.70 de altura, na base um buraco revestido de pedras e argila onde o fogo seria acesso e mantido sempre enfumaçando a carne, já a serragem do corte da lenha, para alimentar o defumador  era de responsabilidade do Jorjão e do Anástacio, enquanto isso com a alavanca eu abria os buracos para  fixar os pés da mesa e do banco.
Carlinhos, cabra trabalhador e perfeccionista, tinha cortado madeira suficiente para uma mesa e um longo banco e algo mais, e com maestria foi montando tudo, de forma a ficar no ponto de retoque, mas era preciso esperar a turma chegar com o motosserra para  fazer os ajustes, afinal ele manuseava uma motosserra como ninguém, criado na labuta de carvoeiro que levou grande parte da sua vida e da sua saúde.
O objetivo principal era deixar tudo ajeitado, buscando o mínimo de conforto nos bons momentos na nossa estadia, afinal seriam 23 dias de pouso no coração do sertão goiano, um sonho que estava se realizando precocemente, eu tinha apenas 17 anos..
Depois de muito trabalho tudo estava pronto, um verdadeiro hotel 5 estrelas, as redes esticadas, mesa , banco, fogão, defumador, varal e tudo mais, com pouco tempo o cheiro da fumaça já rondava o pouso e a água já estava no fogo esperando fervura para passar o café, foi quando Jorjão e o Anastácio, chegaram com o carro carregado de lenha e uma boa campeira pendurada.
Com seu falar sertanejo, ele sorrindo, gritou pela janela...
_Nego, já tem boda pra mistura...kkkkkkk
Ai foi uma união de forças para tratar do trem, e iniciar o preparo do almoço, depois de muitas brincadeiras a manhã passou voando,  e logo o relógio bateu meio dia e cada um sentou na sua rede com um prato recheado de contra filé de campeira, arroz e feijão, o cheiro da pimenta tomava conta do ambiente, e a boa farinha mineira se fazia presente, a proza agora estava em torno das estratégias do que faríamos logo depois do descanso do quilo.
Anastácio e Carlinhos seguiram mata adentro em busca de fruteiras, enquanto eu e Jorjão íamos subir beirando a mata até os pequizeiros, para assuntar como estava por lá, se caso não desse espera, embrenharíamos na mata em busca de algo melhor.
A turma já conhecia o local e sabia os pontos de espera, os passador, os lameiros, os saleiros naturais, e tudo mais que era preciso para um bom resultado naqueles sertões, sem falar nos 6 sacos de milho que levamos para preparar algumas cevas de paca.
Depois da louça lavada e tudo ajeitado no giral, começamos a arrumar a tralha, uma boa farofa de campeira na matula, rede, lanterna, roupa de frio e capa de chuva na mochila, depois de algumas recomendações cada um pegou seu rumo.
Eu e Jorjão seguimos o combinado, beiramos a orla da mata fechada em um trieiro de anta no rumo dos pequizeiros, chegando lá foi mais do que imaginamos, o trem tava pisado por demais, e caroço ruído pra toda banda, da mata vinha um trieiro batido dos mateiros, do campo a batida dos campeiros, e da orla da mata, já bem mais singelo o dos catingueiros e do veado anão, sem falar na bagunça dos pebas e outros pequenos que circulavam por ali.
Em uma breve volta de reconhecimento, demos logo em uma grande vareda, beirando a mata, caminho dos queixadas que em grande grupo fazia afundar o chão rumo ao saleiro que ficava logo abaixo da chapada, em um brejo que de longe exibia grandes buritis, com o fação na mão e a velha Itajubá nas costas o amigo rompeu circulando o pequeno capão, na direção dos buritis.
Chegando ao brejo, a bagaceira era grande, ali era um saleiro natural, tinha buraco que cabia um homem dentro e rastro de tudo que é trem que se possam imaginar, nessa época de muita água os porcos costumam lamear em qualquer ponto, segundo Jorjão os moradores da mata faziam daquele lugar o ponto de encontro no amanhecer, no entardecer e nas madrugadas silenciosas do sertão em busca de minerais.
Pelo batido os porcos passaram no amanhecer do dia, mas não lamearam, isso indicava que na parte da tarde o sol continuasse firme e quente, era certo eles irem se refrescar no lameiro, o cheiro dos queixadas ainda estava no ar, impregnado na terra e no capim.
Jorjão já estava com a estratégia armada, iria ficar no saleiro e passaria a noite, eu ficaria no carvoeiro entre os dois pés de pequi, Carlinhos e Anastácio já estavam ajeitados e com fruteiras marcadas para a noitada, agora com tudo programado, era só pegar rumo e aferir a luneta da 32-20 antes de empoleirar.
O .combinado era  para  todos estarem no pouso no mais tardar até as 10:00 horas da manhã do dia seguinte, pois se não chegasse até esse horário era para o companheiro ir averiguar se houve algum problema. Nunca se deve esperar em lugar sem que o companheiro saiba o rumo.
 Já na sombra do  carvoeiro, não me demorei muito para não deixar cheiro de gente, tratei de subir, esticar minha rede, puxar a traia e me ajeitar para a longa jornada de aguardo, que poderia se estender até o outro dia. Entre a campina e a mata fechada, tinha todo um cenário de paisagem maravilhosa a minha disposição.
As nuvens escuras estavam distantes, mas a certeza da chuva chegar na beira da madrugada era grande, então eu que estava mais perto do pouso pensei. Dependo  do que acontecer eu vou é cair fora pro pouso, me esquentar na beira do fogo com pequena dose daquela boa pinga do Jorjão e um bom tira gosto, antes de cair na rede.
         As horas foram passando e beirando o fim do dia o sol pintava o céu em cores turvas, fazendo uma imagem em tons de aquarela, na beira da mata fechada o pio triste do Inhambu ressonava com o cantar melancólico da Jaó, já na campina, bem acima as Seriemas faziam um dueto empoleirado num cupinzeiro.
         Não demorou muito para avistar ao longe um casal de campeiro que  caminhava manso hora parando para pastar, ora caminhando, sem fazer menção do tempo, mas sempre atentos aos movimentos, olhando para um lado e para o outro torcendo a orelha em busca de algum ruído diferente, se preservando do ataque repentino da onça pintada que parecia perambular naquelas brenhas em busca de caça..
         Começava a escurecer quando um bando de porcos cortou a mata com uma buia de tremer o chão, assustado com o movimento logo pontou na orla um catingueiro acinzentado que não me deu chance de tiro, atinado com algum trem, o espertalhão trilhou ligeiro sem fazer parada e sem olhar para traz.
         A noite chegou lenta e o breu tomou conta do mundo, um silencio gigantesco fez-se presente, e de vez em quando era rompido pelo canto do Curiango nas campinas, ora pelo canto do Urutau na mata fechada, e foi-se as horas lentamente, o relógio batia nove horas quando a buia veio torando tudo no sentido da mata para o campo, as passadas abrindo o capim espesso dava a certeza que era mateiro grande.
Parou, caminhou lentamente, parou novamente, a agonia já tinha dominado meu coração que batia desenfreado, enquanto o corpo acompanhava tremendo com a adrenalina que escoria no sangue, a ponto de fazer a boca azedar, ponto de tiro pronto, dedo posicionado na lateral do quebra mato, enquanto a outra mão tateava o botão de acionamento da lanterna esperando o momento certo.
Os ouvidos captavam cada movimento e a mente criou a imagem do local e de tudo que estava acontecendo ali em baixo.
Mais um passo, e uma longa parada, mais um passo...E o coração de mateiro avisou...Tá na hora, o indicador esquerdo acionou o feixe de luz que cortou em direção ao par de olhos azuis que brilharam na escuridão da noite, enquanto o indicador direito esmagava o gatilho devagar buscando o fim da folga, o gatilho finalmente endureceu, e acionou o percutor, ecoando noite a dentro o estampido da explosão da 32-20, em um rastro de fogo levado pelo deslocamento do projetil.
Logo após o disparo, o som da pilotada, o berro e o pulo,  o mateiro sem muito que  fazer  tombou pelo no capim,  já no escuro eu escutava apenas o ruído do movimento dele que esticava e encolhia a pata traseira no frenesi da morte.
Novamente cercado pela escuridão, banhado pelas estrelas, meu corpo buscava retomar os sentidos, o coração foi quietando aos poucos, a tremedeira passou e um gole de água era o que a garganta seca pedia, com o serviço pronto ajeitei um palheiro e sentei fogo no bicho, pra acalmar ainda mais a alma.
Acendi a lanterna niquelada da Rayovac novamente para conferir o bruto, lá estava ele inerte, o céu em pouco tempo começou a escurecer, e lá no horizonte a briga estava era feia, nuvens negras esbaravam umas nas outras resultando em trovões e raios que clareavam a escuridão da mata, um vento forte sobrou dobrando o capim e balançando o pequizeiro, a ventania vinha trazendo o recado que a chuva seria forte, em tom de tempestade.
Resolvi então colocar o pensamento em ação, ajeitei a tralha, desamarrei a rede, baixei os trem e em menos de 15 minutos já estava no chão, ao lado do meu troféu, o relógio marcava 10 da noite, piei o mateiro amarrei a cabeça junto a pá, jóquei o bruto nas costas e rumei para o acampamento.
Eita trem pesado, não rompia nem 50 metros e já parava para descaçar, a roupa ficou molhada de suor e grudava no corpo, e assim se foi todo o trajeto, e isso porque era descida e quando eu estava beirando o acampamento, já escutei o barulho dos pingos na copa das arvores anunciando que eu estava certo.........
Chuaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa...
O mundo desabou em chuva, o véu branco da tempestade era balançado pela ventania que arreliava a copa das arvores fazendo arruaça na mata, nessa altura eu  já estava no pouso no abrigo das lonas do acampamento, o mais importante agora era atiçar o fogo, trocar de roupa, preparar um bom café e tratar de limpar o bruto.
Tirei a roupa e na biqueira da lona tomei um maravilhoso banho de chuva, a água fria e limpa que caia por sobre a copa das arvores parecia lavar meu espirito, levando todo cansaço do dia, o stress da cidade grande que maltratava minha alma e os males do cotidiano corrido das capitais que impregnava meus pensamentos, naquele momento senti como se o tempo estivesse parado, como se o mundo voltasse para o passado, o vento soprava calmo por entre a copa das arvores, aquele instante se tornava sagrado, como se só existisse eu, a mata e a chuva que despencava do negro céu do sertão.
Já de roupa seca e quente olhava a minha prenda pendurada ao lado tomando banho de chuva e esperando para ser coureada, enquanto isso a fogueira estralava por entre a trempe que sustentava a chaleira de água que fervia para o café, nessa altura uma pequena dose de pinga para a para  afastar o frio, a chuva parecia se acalmar e os grossos pingos foram se transformando em um chuvisco fino.
O cheirinho do café alegrava o estomago, sentado ali, com meus pensamentos, ficava vendo as voltas que a fumaça do palheiro fazia na luz do lampião, de vez em quando o silencio da noite era quebrado pelo cachoar dos sapos e pelo cantar vergonhoso dos grilos.
Vesti a capa de chuva e fui courear o bicho, em pouco tempo ele estava descamisado e limpo, toda a buchada, couro e partes sem serventia estavam ensacadas corretamente para ser enterrada na manha seguinte.
Não resistindo, tirei os dois contra e filé, separei um bom pedaço, fatiei bem fino do jeito que eu gosto, temperei com alho e sal e reservei em um prato sobre o giral, coloquei a frigideira na trempe com duas colheres de banha de porco, depois de uma boa atiçada no fogo, logo a gordura começou a pipocar de leve, estava na hora de colocar os finos bifes e esperar dourar, o aroma subiu tomando conta de tudo, uma cebola fatiada por cima para incrementar o prato, agora era mais uma boa dose e um bifinho de contra filé de mateiro como tira gosto. A prenda continuava pendurada para escorrer, pois somente ia para salgar ou moquear na manha seguinte.
Ali na rede fiquei olhando a chuva cair de leve, comendo carne e tomando minha brejeira, inté que tudo se escureceu e o sono me levou sem que eu me desse por conta.
Abri os olhos incomodado com o frio da manhã, os raios de sol já rompia  a mata e as Jaós faziam seu conto de amanhecer, junto com uma variedade enorme de pássaros que cantarolavam em todos os tons e melodias, devia ser umas 5:30 da manha, com uma leve ressaca, pulei da rede, lavei o rosto no balde que aparou a água da chuva da noite anterior,  aticei o fogo para preparar o  café, ainda sonolento fui na caixa de mantimentos pegar o que era preciso para preparar um belo café da manhã, pois a turma chegaria cansada e com fome.
Café passado na hora, ovos fritos, e pão quente na frigideira, com bastante manteiga, e o restinho da carne de mateiro, com a xícara de café na mão e o prato  recheado sentei no banco  e comi a vontade, quando acabei meu café puxei um cigarro do bolso e acendi.
Foi ai que percebi algo errado. Cadê o mateiro?
Pensei ser brincadeira dos companheiros mas no trieiro lavado da chuva não tinha rastro, provando que ninguém ainda tinha chegado no pouso.
Só estava o lugar, a corda pendurada vazia, e um grande arrastador nas folhas, algum trem veio e levou ele...Mas o que seria?
Passei a mão na 32-20, manobrei acionando o percutor e fui de ponta e pé seguindo o rastro.
Algum bicho no silencio da madrugada veio fazer um lanche noturno e levou minha prenda, no acampamento ou nos pedaços de terra não tinha rastro, olhei atentamente e fiquei imaginando o perigo que passei dormindo na rede sozinho no meio de um fim de mundo daqueles, seguindo mais a frente e encontrei o arrastador nas folhas que seguia para o centro na mata fechada, ora bem sinuoso, ora singelo, o trem veio e carregou a carcaça do mateiro por mais de 300 metros.
Quando encontrei a carcaça, olhei para todos os lados, para as arvores, me agachei em silencio por um bom tempo, mas não vi motivo de nada, o mateiro estava  bem comido, parecendo obra de onça parida, olhando aquela cena tentando encontrar respostas para o acontecido, lembrei da palavra de um velho amigo que dizia...
Bicho do mato passa fome..
Não sei ao certo se aquilo era obra de uma pintada, ou de uma parda ou mesmo de outro felino morador da mata, pois o chão coberto com uma grossa camada de folhas não denunciava pegadas, alguns pontos de osso furado de dente dava a impressão de dentes novos e bem afiados.
Por outro lado alguns ossos quebrados por fortes mandíbulas e pela quantidade consumida parecia obra de gente grande, olhei bem cada canto, analisando coisa por coisa, procurando resposta para o acontecido, então percebi que não havia mais nada o que fazer, a não ser voltar para o acampamento e esperar a turma chegar.
Voltei a acender o pito e fui caminhando lento até o pouso, pitando e pensando que eu estava a 4 metros do mateiro e não ouvi nada nem mesmo o tombo suave dele no tapete de  folhas secas, talvez por estarem molhadas pela chuva, com certeza a boa pinga e o barulho do gotejamento das arvores ajudaram a dar apoio a gata ladrona de mateiro.
Lembrei-me do caso de uma capivara que os jacarés carregaram no Mato Grosso, então isso não era novidade, talvez a turma pegasse leve na malhação sobre o roubo da gata, sem falar na bronca que Jorjão me daria sabendo que voltei para o acampamento e ainda dormi na rede ao relento.
De volta ao pouso fui organizando o que era preciso e logo tratei de adiantar o almoço porque já beirava as 09:00 da manhã, logo a turma ia chegar, estariam com fome e teriam afazeres de tratar o resultado da noite, enquanto isso eu fui ajeitando o que pude, não demorou muito escutei o grito do Jorjão chegando na beira da mata ...Era seu refrão...
NINQUEM, NINQUEM TEM A VIDA QUE NOIS TEM NEM O PRESIDENTE...
Com um queixada nas costas e 4 Jaós amarrados no bornal, suado feito tampa de chaleira, caiu na rizada dizendo que dormiu enrolado num prástico, mó da chuva...kkkkkkk
Anastácio e Carlinhos logo chegaram, não traziam nada além de muita historia pra contar, todos tomaram café e comeram pão esquentado na frigideira, inté  que  tudo se acalmou , depois de tanto teretete de conversa veio a pergunta....
E ocê, tombou o que?
O bife do almoço respondi..kkk.....O resto a onça levou.
Foi o ponto do reboliço, risada e piada não faltaram, sem falar na bronca que levei depois de contar todo leriato do acontecido, e para confirmar toda história levei a turma toda até a carcaça, para verem com os próprios olhos o que tinha acontecido.
Carlinhos logo marcou vingança, vou esperar na carniça, ela vai voltar, falou alisando a velha 20, e olhando para as arvores ao redor procurando trepeiro, não demorou muito coçou a cabeça e puxou o facão da cinta para cortar alguns varão para preparar o mutá.
Jorjão apenas riu e analisando a cena falou...Uma fêma e dois fiote novo, oia aqui o piseiro dos fiote formando esses amassado redondo na folha...Carece esperar não Carlinhos, deixa ela alimentar os fio, mas tem que abri os olhos que ela vai rondar o pouso por muitos dias em busca de mais comida.
Se fosse trem sem fiote eu num dizia nada, mas parida é covardia, vamo pro pouso cuidar dos trem, antes que ela passe por lá, carregue o queixada, que eu carreguei no lombo por mais de hora e ainda de mais perda no rancho.
Em época de mato alto, a onça tem dificuldade de caça, e as vezes quando o trem aperta parte para pegar criação, sempre no inicio e fim das aguas ela passa aperto no bucho, dizia Carlinhos.
E pegamos rumo do pouso cortando a mata ao som dos pássaros, eu ia por ultimo pensando o tanto que era bom estar ali, em meio a natureza dividindo o comer com uma onça pintada e seus filhotes.
Jorjão deixou bem claro, a partir de agora somente andaríamos em pares, nunca sozinho, e nada de perambular a noite, na espera era procurar ficar alto, e marrar uma galhada no pau de subida pra mó de impedir a chegada da bruta, é difícil onça mexer com gente, mas ela com fiote pode se tornar perigosa, mas no intuito de proteger e alimentar as crias.
E assim foi feito, durante os dias que se passou ela rondou o acampamento todos os dias, teve uma noite que ele chegou a andar debaixo da lona, deixando seu rastro largo afundado na terra úmida plainada na enxada, sinal que era pesada e grande, o rastro dos filhotes vimos somente no trieiro, sinal de que ela os escondia antes de tomar qualquer decisão mais abusada.
Jorjão dizia que ela ia dar trabalho, a carne tinha que ser salgada alta e mesmo assim ela ainda roubou muitas mantas de queixada, não era comum isso, mas acho que devido a facilidade de encontrar alimento ali, ela oportunista que é, não deixou passar
Durante toda nossa estadia, entre idas e vindas mata adentro, ou nas longas caminhadas nas campinas na caçada de curso e de esbarro víamos seus rastros nos trieiros e nas estradas, mas nenhum de nós conseguiu vê-la, nem a ela nem aos filhotes.
         O Fantasma da Floresta caminhava entre a gente sem deixar ser visto, isso provava a minha teoria de que passamos do lado de muita onça sem ver ela, e que elas estão bem mais perto do que pensamos.
É um animal fabuloso, digno de respeito.
Foram 23 dias de muitas aventuras e alegrias, com uma mistura diferente  no prato a cada dia, a fogueira acessa no acampamento, as horas de piadas, de prosa de causos, as competição de tiro na hora do kilo do almoço,é uma pena que coisa boa passa tão rápido.
E logo estávamos arrumando a tralha de volta na caminhonete, uma velha C10 branca, estaríamos voltando para a vida da cidade novamente, na hora de conferir o acampamento para ver se nada tinha ficado para traz, senti o peito apertar, e os olhos se encherem d’água imaginando comigo mesmo...Será que voltarei a este lugar?
E o barulho do motor roncou alto, junto com o grito do Jorjão....Vamo simbora home.....
E ali sentado na carroceria dentro da lona eu ia olhando a mata ficar para traz, junto com a velhaca onça roubadeira de prenda, no coração um aperto, na mente as lembranças que hoje se transformaram em letras nesse grande texto que conta esse causo.
Saudade de tudo, do tempo que não volta mais, da mata, do sertão do meu Goiás, dos amigos que já se foram e que hoje com certeza, campeiam nas campinas do Céu.
Jorjão era uma figura fantástica, mateiro nato, com uma sorte pra bicho de fazer inveja a muito aventureiro que tem estrela apagada, mas um homem humilde, bom disposto a ensinar sem ser arrogante, nem egoísta, sempre dizia que pouco sabia, pois a mata tem dono, e o Pai concede a prenda quando se é merecida, um amigo verdadeiro, pra mim foi uma grande honra estar na presença de um ser tão especial.
Anastacio negro alto, forte e de voz grossa, mas bom feito ele nunca conheci, forte feito um touro,  uma pessoa nobre, que mesmo sem saber ler ou escrever tinha a sabedoria de um professor, e a educação de um Lord, criado nessas brenhas do sertão goiano, sabia seus segredos como ninguém,  é amigo que estará sempre presente nos meus pensamentos.
Carlinhos homem franzino, de boa alma, lembro-me de sua voz fanha se vangloriando de um bom tiro com mais de 150m somente na alça e massa da sua winchester 22Lr, e a saudade bate no peito de saber que desses quatro amigos somente eu ainda estou aqui, e me ponho a refletir se a vida pede a morte, talvez até seja muita sorte eu ainda estar aqui.
E vou vivendo cada dia intensamente meus sonhos, porque sei que meus dias também terão um fim, nesse tempo eu era jovem, um menino de 17 anos, mas que já sabia que um bom amigo tem que ter maturidade,  talvez por ter perdido meu pai tão jovem, me apegava a eles buscando uma figura paterna.
Mas os momentos vividos se refletem bem mais que uma vida inteira, pois trago na mente a certeza de que.
Todo homem morre, mas poucos vivem realmente sua vida..E eu busco viver minha vida a cada segundo com grande intensidade para que ela não seja como o fantasma da floresta, passe sem que eu a veja passar.

Bello 20/03/2014
 

5 comentários:

  1. Bom demais teu causo cumpadi Bello! Me causa estranheza alguém ainda não ter comentado. E gostei de terem poupado a gata e seus filhotes..... A mãe natureza está agradecendo até hoje! É por isso que gosto do meu chão goiano! Cheio de vida, de histórias sem fim, mas, digo, com certeza, cumpadi.... tá tudo acabando..... já estive em lugar onde tinha um pequizeiro de mais de 100 anos....e detrás dele uma mata cheinha de cama de veado. Não há de ver que o dono da fazenda arrendou tudo pra gaúcho plantar arroz? E sumiu tudo: o pequizeiro secular e a mata dos campeiros! Uma lástima de fazer chorar! Eita tristeza!

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    1. É companheiro, a vida é boa demais, mas a humanidade cresceu muito e as lavouras, vem numa velocidade assustadora, levando tudo, flora, fauna, recursos hídricos e muito mais, é preciso entender que preservar vai muito além do que estamos acostumados a pensar....Baita abraço

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  2. Show seus contos enchem os olhos.muito talento parabéns belo agente entra na história fantástico

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  3. Todas as noites eu leio os seus contos. Tenha certeza de que eles são muito especiais para mim

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  4. Parabéns Belo seus contos sempre me emocionam.

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