MINHA PRIMEIRA
CAÇADA DE CURSO
Era meados do mês de outubro do ano
de 1981, e o céu escuro no horizonte anunciava o inicio das chuvas, Sr. Jorge a
qual chamávamos carinhosamente de Jorjão, amigo da família de longos anos e
companheiro de caça do meu padrasto, era homem alto, mateiro, simples de
sotaque caipira e caçador de primeira, minha admiração por ele se construiu
através de seus feitos, por sua ética, pela forma de me tratar como filho e
pelas infinitas historias que ao longo de minha infância ouvi atento imaginando
um dia poder participar de uma aventura guiada pelo velho Jorjão.
Seu menino, era como me chamava,
tratava minha mãe de Dona Menina, chamava Veado de Bode, Ema de Duelo, Perdiz
de Galinhão, Paca de Leitoa, Cotia de Ratão, e tudo que conseguia derrubar em
suas lidas de Prenda, manias que aprendi e trago comigo até hoje.
Em caçada sem prenda se encontrasse
com um duelo no caminho era motivo de festa, ia negaceando, com uma galhada
tampando o corpo até chegar ao ponto de tiro com a maestria de quem nasceu para
o assunto... Oia o Duelão lá seu
menino..dizia ele, brilhando os olhos de felicidade...
Quase tudo que sei aprendi ao lado
desse homem fenomenal que entendia do mato mais que qualquer outro que já
conheci, sem querer me desfazer de outros mestres como o Nego Lilico, o veio
Genaro, o Sr, Waldecir e de tantos outros que na vida a fora tive não só o
prazer, mas a honra de conhecer e poder viver momentos inesquecíveis que
guardarei para minha eternidade, afinal um homem precisa ter histórias pra
contar aos seus netos, se não tiver eu lhe digo, é um homem que não viveu .
Caros amigos traço essas linhas com
lágrimas nos olhos, e aperto no coração por saudade de um tempo que há muito se
foi, de um tempo que jamais voltará, tempo que levou não só os anos de minha
vida, mas também alguns parceiros que foram muito mais que amigos, como o
finado Jorjão, o nego Lilico, o Sr.
Joaquim,e outros mais, tempo de fartura, sem perseguição, tempo em que um
caçador era visto como homem de coragem, de admiração, tempo em que as lavouras
eram poucas e os campos e matas tomavam conta de tudo.
Era por volta de sete horas da noite
quando gritou no portão a voz matuta e comovente do amigo Jorjão, corri em
disparada para recebê-lo, de um salto grudei no seu pescoço...Carma seu menino,
gritou ele, tudo batuta. Fazendo cócegas na minha barriga, em um abraço
caloroso....
Tudo batuta, era um termo usado para
perguntar se estava tudo bem, termo que a muito não ouvia e que em uma viagem
que fiz a Chapada Gaucha ano passado, um senhor negro de porte baixo me recebeu
em sua casa, com o mesmo termo, aquilo me fez retornar ao passado e tirar
lagrimas dos meus olhos, sou um saudosista sentimental com uma imensa
dificuldade de lidar com o tempo.
Sua visita era pra combinar com meu
padrasto a primeira caçada de curso daquele ano, a velha mesa de madeira estava
ajeitada, ali eles se sentaram e danaram a prosear, sobre o rumo da caçada que
iriam realizar pro lado de Minas Gerais, local de solo arenoso onde o rastro
era notório e fácil de seguir, combinavam a hora de saída, traia a levar, quem
era o responsável pelo rancho, local onde iam ficar, etc e tal, meus olhos
brilharam e minha mente tentou participar de tudo aquilo..
Corri para cozinha e ajeitei um
picadinho frito de pernil de mateiro, para acompanhar a cerveja gelada que eles
tomavam. Naquela época eu ainda tava tomando Bidú, um refrigerante de uva, que
vinha em uma garrafa pequena e gorda, com o picadinho pronto ajeitei um prato
com farinha e levei a mesa, jorjão bateu um pedaço na boca e logo conheceu o
sabor.... Hummmmmmmmmmm, seu menino, mateiro, eita trem bom...
Comeu mais uns dois pedaços e
falou....
Homi temo que levar esse menino pro
mato, ele já ta um mulecão, e oia o picadinho que ele ajeita, vamo levar ele,
afinal já sabe lumia, (cilibrim era coisa abominada por ele, gostava de campiar
de dia, ter oprazer de negaciar, e dar a chance de fuga a caça) já espera desde
os 8 anos, agora falta aprender a caçar no curso, a mio de todas...
Já sabia do que se tratava o termo
caçada de curso, porque vivia atento não só as histórias, mas também as
conversas, apesar de que naquele tempo escutar conversa de adulto era trem
muito mal visto, adorava ficar de orelha em pé pescando o que tava
acontecendo.
Ele e meu padrasto conversaram até
tarde e traçaram o dia e a hora da saída, e o meu destino também, eu estava
incluso na empreita, e sabia que durante duas semanas não conseguiria dormir,
ansioso com a viagem.
No dia seguinte já tava com bolsa
pronta, e foi me passado a responsabilidade de ajeitar a traia de cozinha,
barraca, e demais itens pro acampamento, passei o dia com lápis e papel fazendo
a lista, mesmo com 12 anos tinha responsabilidade de adulto e como o que mais
eu amava era estar na lida da caça, fazia mais que o impossível para não deixar
furos, começando pela escola que levava a sério e não faltava a não ser em
casos de extrema necessidade como esse....kkkk
Os dias se passaram e enfim estávamos
dentro da veraneio seguindo rumo a Minas Gerais, já tinha dias que eu não
conseguia dormir e nem acreditava que estava ali, rumo a tão esperada e
almejada caçada de curso, cada mata e beira de rio que meus olhos viam
imaginava o que estaria ali dentro, quantos bichos, o que andaria nas noites
sem lua trilhando as brechas da mata, coisa que faço até hoje, na beira dos
meus 44 anos.
Chegamos a Buritis de Minas, e pegamos
uma estrada de terra batida que parecia não ter mais fim, em meio a campinas,
ora cerrado ralo, ora cerradão bruto, ora passando por mata alta, córregos e
pontes de madeira, e a estrada foi afinando cada vez mais, até virar
praticamente um trieiro, e aja perna pra abrir porteira, perdi a conta de
quantas foram, inté que chegamos em uma velha cancela de madeira, toda
amarrada, de corda, parecendo que o morador não queria ser incomodado, paramos
tomamos um café, Jorjão ajeitou um cigarro de palha, com a alegria de sempre,
sorrindo feito menino novo dizia...
Mas tem bode aqui seu menino, mas tem
de dar de pau, cê vai ver que trem ajeitado.
Foi mais de hora pra desamarrar aquele
bando de nó cego, agora pense. E seguimos de primeira parando toda hora, devido
a dificuldade do carro enfrentar a buraqueira, o trieiro era estreito e carro
ali devia ter passado poucos, até que chegamos em um casebre, todo de pau a
pique, com telhado de folha de buriti, e da sua porta surgiu um negro baixo e
franzino, já de idade, Seu Antonio, descendente de escravo com 76 anos morando
ali em meio a mata totalmente isolado do mundo. Foi aquela festa e corre pra
cá, corre pra lá, matou logo umas 3 galinhas caipira pra ajeitar o almoço, uma
felicidade sem fim, na cozinha simples um fogão de lenha responsável por toda
aquela folhigem preta que pintou o ambiente, o chão de terra batida tantas
vezes trilhado pelos caçadores ali presente, no canto uma lata cheia de banha
com carne de queixada, na parte de cima aproveitando a fumaça pra muquiar e não
perder uma banda de paca, no outro lado na prateleira de pau feita
artesanalmente dois queijos curados.
Passamos a manha ali, proseando com
Seu Antonio, Jorjão fazia o leriato em busca de informação. E os bodes meu
veio, tem visto eles....E os porcão, fala meu veio, quero saber de tudo, das
leitoas, dos duelo, só não me fale de jegue, anta to fora..
Dimais uai, na vargem lá de cima tem
6, na campina do buriti, mais 3, lá perto da vereda donde vocês vão pousar tem
mais 4, tem dimais homi, dimais, os porco são bandoleiros, hora ta batendo,
hora some, sabe como é,os bicho anda com
a lua, mudou a lua muda o rumo, mas tava triando lá na mata da vereda essa
semana, paca tem umas duas comendo aqui na beira da casa, é só ir buscar, essa
mesmo aqui, pequei ontem, ai no quintal, tem dimais homi, se deixar entram aqui
no barraco.
Jorjão sem perder tempo já foi curiar
o lugar que as leitoas tavam triando, e de imediato , marcou ponto e trato de
esperar aquela noite, pois iríamos a vereda ajeitar o pouso no dia seguinte ao
amanhecer, depois de bater um baita prato de ferro esmaltado de branco com
galinha caipira, arroz e feijão de corda, passamos o restante do dia ali, na
sombra das fruteiras, deitado na rede, comendo carne de queixada, eles na
cerveja e eu no refrigerante, fazendo
planos, ouvindo causo e matutando o dia seguinte.
O sol nem tinha feito mensão de sair e
já estávamos no rumo da vereda pra levantar acampamento, estrada não tinha,
estávamos rodando no trieiro do gado, na bagagem uma leitoa, prenda de jorjão
ajeitada a primeira noite no quintal de casa, tiro certeiro no meio da cabeça,
lembro disso como hoje, foi uma das primeiras que tive a oportunidade de
segurar e ver ainda em pelo e com corpo quente, enquanto ele esperava eu fiquei
sentado no alpendre no escuro só esperanto do pipoco do tiro...
De longe a imagem espetacular daquele
lugar, se misturava com o nascer do sol, uma mata fechada circulava todo um
campo, de gramíneas baixa, no meio um rego de água cristalina, cercado de
buritis, lindo, simplesmente lindo, a imagem ficaria gravada em minha mente, a
visão da primeira vereda, água cristalina cortando o sertão mineiro, visão espelhada na retina de um menino de 12
anos, cheio de sonhos e apaixonado pela vida mateira.
Acampamento pronto, cuidei de passar
um café, já batia 6:30 da manha, quando meu padrasto e o velho jorjão se
colocaram a trocar de roupa, vestindo de camuflado, roupas que o meu padrasto,
militar arrumava lá no quartel, da bolsa ele tirou uma calça e uma gandola e um
coturno que pra ficar bom tive que colocar 4 meias...A alegria era total e
contagiante...Sorrindo ele disse....
Se ajeita filho, vamos caçar, vamos
tombar bode..
Jorjão retrucou na
hora...Nem............. Seu menino vem comigo, e quem chegar primeiro no pouso,
ajeita a bóia, e quem voltar de mão abanando lava as vasilhas..kkk...Trato
feito, e saímos cada um pra um lado, seguimos a estrada até um certo ponto, ele
com a Jurema, sua 22LR Itajubá nas costas, eu com a mochila, levava lanche,
lanterna, saco de linho, e água, rompemos um bom trecho , quando ele fez mensão
de parar, e logo apontou, logo a frente,
dois rastros cortava a estrada, ele abaixou olhou, tocou com a ponta do dedo,
tinha garoado na madrugada, era rastro fresco, eles estavam por perto....Ai
iniciou sua primeira aula..
Oia seu minino, dois tracinho, um do
lado do outro, é a pegada do bode, passou manso, o rastro ta inteiro sem
levantar areia, e é dois oia, a parte de ponta é a frente, eles desceram aqui,
pro lado do cerrado.
Naquele momento pegou um monte de
folhas secas e jogou para o alto, queria ver o rumo do vento. Que se mostrou
fraco, mas direcionava a nossas costas...Bom sô, ta meio bandoleiro, sem rumo,
mas demo sorte.
Tem que ir contra o vento, de oio aberto, pode andar normal, mas pisando
leve, se ele correr, antes da gente dá fé dele, tem que parar e assuntar o
rumo, com média de 100 metros ele vai parar, geralmente antes de debandar
aceita três assopros, agora num pode
conversar, tudo no surdo mudo, na hora que a gente achar ele, ele ta no saco.
Viu o Bode é a hora da paciência, fica
parado e só anda quando ele baixar pra comer, sempre buscando um trem de apoio
pra confundir a visão do bicho, se for
campo aberto de muita distancia, é só deitar no chão e abana lenço pra ele, o
bicho é curioso e vem ver o que é, vem marchando que é bonito, fica sempre
olhando pra mim, atento ao meu sinal, e oia aonde pisa, o mato aqui é cobrento.
Ansiosamente balancei a cabeça com o
sinal de positivo, e entramos no cerrado, hora andava, hora parava, e observava,
a todo instante abaixava, ia trilhando o rastro, olhava pra mim com brilho no
olhar e sorriso aberto, como quem diz, estamos perto, ora levantava o nariz
buscando cheiro, e parava a vista num ponto querendo ver o que tinha por ali,
em lugar de folha mostrava o furo feito pela ponta do casca, sempre sorrindo,
cortamos o cerradão e logo no primeiro campo, tomei um baita susto....
Oia eles lá, dois campeiro, dois bode como ele
dizia, um macho maior logo deu sinal, levantou a cabeça, como quem busca sentir
algum cheiro diferente, rodopiou as orelhas querendo ouvir algo, abanou o rabo,
deu uns dois passos e parou, ficamos imóveis, até ele se acalmar, quando ele
baixou pra comer, Jorjão fez sinal para que eu me sentar no capim e prestar
atenção.
Saiu negaceando no rumo de uma arvore, lá de
longe o bicho curiou novamente, andou mais um pouco, e foi de uma arvore a
outra, sempre quando o bicho relaxava a guarda,
e assim se foi, o trem demorou um bocado, até que escutei o estampido do
tiro...BAAAAMMM...E em seguida o barulho do impacto do projétil na paleta do
campeiro, a pilotada, como ele dizia, o bode deu pulou feio, na tentativa de correr,
mas com pouco não resistindo tombou...O outro macho parou, mas Jorjão , danou a
andar e ele tomou espiro cerrado adentro sumindo rápido em pulos maravilhosos, mostrando de longe o branco da
sua calda.
Era pra tombar somente macho, dizia
ele, e um por dia, senão acabava a farra, caçada de bode era nessa época, não
esperava na flor pequi, achava errado, quem mata um mata dois, dizia de cara
fechada, na época da flor, é época de cria, na opinião dele era espera injusta,
de março a julho o macho pega cheiro forte, por causa do cio, em agosto pra
setembro as fêmeas estão tudo de bodinho novo no bucho, a barrigada demora
média de 30 semanas, ai ela se aparta, fica sozinha, o fiote nasce beirando o inicio das águas lá
pra fim de setembro, ai ele tem leite inté a chuva cair e a brota ficar macia,
com 4 meses ele desmama justo na época da fatura , do mato verde, agora a fêmea
só vai por cio dispois de um ano, é um ano amojando e cuidando, pra dispos
emprenhar de novo, é bicho de pouca cria, e de perda de filhote, derrubar
campeira só em março pra abril, nesse prazo já apartou da cria e ta com carne boa, coisa que ele fazia a
cada dois anos, gostava mesmo era de esperar mateiro, bicho astuto, que desafia
o esperador.
Um macho cobre muitas fêmeas, se agir assim
você tem prenda pra toda vida, era um homem que a meu ver deve ter passado da
casa dos mil, mas tinha ética forte, respeitava o tempo, só voltava no mesmo
ponto a cada dois anos, prazo pra recriar, num dava tiro perdido e muitas vezes
se contentava apenas em ter prazer de contemplar o campeirão cortando a campina
aos pulos.
Voltando a treita, quando vi que ele
foi para pegar o bicho, sai correndo feito louco e pulei no seu pescoço, caímos
juntos na campina, brincando e gritando de alegria, beirava as 11:30, fui até o
bicho, e alisei ele, senti na palma da mão ainda seu ultimo sussurrar, bicho
lindo, chifre de três pontas troncudo, branquinho, coisa linda de se ver.
Depois de toda farra puxamos até um
carvoeiro e penduramos pra limpar, Jorjão experiente sacou da faca coureira e
se colocou a trabalhar na prenda, rancou as patas, tirou o couro e abriu com
cuidado o bucho, subindo a faca até o fim do pescoço, enfiou a mão e sacou o
coração, de mão fechada ele disse...
Oia seu menino, se o coração não tiver
furado, eu te dou a Jurema, se tiver furado oce faz o filé do lombo acebolado
pro veio almoçar, combinado....
Combinado, respondi entusiasmado...
Jurema era a espingarda dele, nome colocado pra homenagear um antigo amor
deixado lá pras banda do Mato Grosso, Jurema era seu xodó, e se fosse marcar no
cabo cada prenda, já não tinha lugar pra marcar mais nada há muitos anos...
Com a mão fechada e coração dentro
dela ele me mandou abrir a mão, e colocou a dele sobre a minha fazendo cair o
dito cujo, quando olhei, tava lá um furo de 22LR, cortando de um lado a outro,
no centro, perfeito como que feito a mão...
Me olhou e caiu na
gaitada..............kkkkkk..... Oia seu minino, bode meu tem coração furado,
só piloto no suvaco, erro
não..kkkk...Agora vamos ensacar esse trem e pegar o rumo do pouso, oce , vai
preparar o lombinho, nois toma um banho na vereda e um pinguinha pra rebater,
oce não, que ainda é muito novo, só o veio Jorge aqui, pra mô de aprumar o
esqueleto dispois dessa caminhada...kkkkk
E seguimos rumo ao acampamento, ele a
frente levando a prenda e eu com a mochila, a Jurema nas costas, me sentindo o
maior caçador do mundo e com um sorriso que jamais sairia da minha alma, afinal
tudo aquilo éra o inicio de um grande aprendizado, de uma grande história, que se
daria em muitas caçadas de curso, a qual aprendi a lidar e amar com o parceiro
que hoje campeia do lado de Deus, foi-se deixando pra mim de herança após a
nossa ultima caçada muita saudade e um grande presente, mas isso já é outra
historia que contarei em outra ocasião....
Bello 20/06/2012.
Chorei largado, me vi ai ao lado de vocês.
ResponderEliminarChorei largado, me vi ai ao lado de vocês.
ResponderEliminarParabéns Bello realmente histórias que só quem ama a lida entende como se diz "vida igual nois tem nem o presidente tem, nem o presidente!"
ResponderEliminarFico feliz por saber que já andastes em terras conhecidas. Como conheço aquelas estradas, campinas e veredas. Terras natalinas da família de minha esposa. Buritis, Chapada Gaúcha, Arinos. Linda historia, meu amigo.
ResponderEliminarObrigado amigo..Grande abraço.
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