O MATEIRO
Beirava
as seis da tarde quando um bando de Cancão danou numa algazarra de marcação, o
coração timburetou forte, pois a experiência de mateiro me dizia que algo
grande vinha cortando a mata em direção a fruteira, logo uma bulha marcando uma
toada lenta reinou nos meus ouvidos anunciando a chegada do mateiro, que
rodopiava as orelhas e levantava o focinho como que sentindo minha presença.
A
claridade do dia ainda estava forte e o astro rei infiltrava raios de luz pelos
furos deixados pela mata, criando pontos feito feixe de lanterna de foco miúdo,
e
imagem se formou com tons tão nítidos que me coloquei a observar, a beleza
do mateiro que caminhava lento atento a tudo e a todos enquanto coletava os
frutos caídos, com a ponta do nariz ele parecia selecionar o que lhe cabia bem
ao bucho.
As
vezes com a pata arribada ficava a fitar ao longe, como que esperava a qualquer
momento uma onça ou outro predador aparecer na parte mais limpa da mata, seu
pelo marrom escuro parecia ter sido penteado, os adornos na cor preta no lombo,
no focinho e nas canelas completavam seu charme, a anca musculosa mostrava de
onde vinha a força para dar saltos tão alto na hora da fuga.
As
orelhas rodiando sem dar trégua buscavam qualquer motivo de som que indicasse
perigo, um radar perfeito capaz de escutar o pisar macio da gata no tapete de
folhas secas que cobrem o chão da mata, sem dúvida alguma as enormes orelhas
são pontos determinantes na formação da sua inconfundível silhueta, a perna
traseira tremula parecia querer mostrar que apesar de seu andar majestoso, lhe
cobria o nervosismo de estar em local onde predadores poderiam lhe espreitar,
parecia que ele ia estourar a qualquer momento, com seus enormes saltos e sumir
mata adentro.
Majestosamente,
ia rodopiando a fruteira, um enorme pé de Mirindiba que cobria o solo marrom da
mata com seus frutos de cor laranja, adocicados e de polpa macia, onde todo
bicho vinha trilhar e fazer parte do banquete.
Ali
em cima a mais de cinco metros de altura eu observava toda essa imagem
maravilhosa envolvido em uma sensação única de admiração, o mateiro é realmente
um animal fantástico e digno de respeito, esse ai talvez por ser um macho jovem
seja um pouco descuidado, ou talvez por ser uma mata preservada sem perseguição
lhe dava a segurança de perambular a qualquer hora do dia vadiando pela mata.
Logo
ele satisfeito se retirou, respeitosamente assim como chegou, pendurei a velha
CZ, a imagem foi o bastante, me senti realizado, as vezes o contemplar nos traz
um enorme prazer, estar na mata e contemplar seus habitantes é fantástico, os pássaros,
as borboletas na beira na praia do rio coletando sais, as pequenas coisas se
tornam gigantes.
Desci
e voltei para o acampamento, lá uma boa pinga faria companhia para uma boa
farofa de carne de sol, ficarei essa noite a beira do fogo, contemplando as
estrelas ao som do pio do Urutau, e
sentado ali no meio do nada me coloquei a
matutar o tanto que o Veado Mateiro e toda essa natureza que me cerca
tem o meu total respeito....
Bello
20-04-2015
ARMA ENVENENADA
Zé
estava todo proza, afinal estava estreando sua espingarda nova depois de um
longo tempo sem caçar, era espera de
jatobá, estava bem batida de porco queixada e cotia, orgulhoso com a vinte na
mão se sentia o cara mais batuta do pedaço, a ansiedade era grande por demais, encachado
na rede somente aguardava o momento de puxar o gatilho, lá pras beira da boca
da noite a porcada começou a rondar a fruteira fazendo um regaço de buia que
inté surdo aprumava pro tiro, era um vai e vem medonho, mas a mata fechada
pouco se via, até que começou a pontar porco, um machão brabo resmungou como que
atinando a presença de gente, e antes dele fazer fofoca pro bando, o Zé
resolveu puxar o cabelo do gatilho bem no rumo da corcunda dele...
Pooooouuuuuuuuuuuuuu,
e foi porco pra todo rumo, inclusive o fia dumas équa que tava escolhido no
esquadro da mira e que era certo ir pro barraco para encher a panela, da outra
arvore o companheiro de caçada não acreditou no ocorrido, Joaquim brabo feito
jararaca enlatada, foi desatando a rede e raiando num resmunqueiro que se podia
ouvir de longe.
_Tem
base não, de vinte, espingarda chique dessas deixar romper, tem base não, inda
mais com cartucho de fábrica, tá marrado, cebesta.
Esse
trem num corta não home ?
Ocê
atenta que essa espingarda tá é carente de veneno, trem mais sem opinião, num tá
vendo que o tiro dela não tem acerto, num tonteia e nem bota no chão, só faz
bicho peraltear mata adentro num atropelo doidio, e dispois vai morrer em
desatino desavisado longe da nossa vista e da nossa panela.
Ainda
sentado na rede, Zé estava sem acreditar que perdeu a caçar, escamoteou a bicha
e apoiou no joelho, ali ficou oiando sem motivo de ação tentando entender o
ocorrido, somente escutando a proza do companheiro Joaquim, que a esse prazo já
estava desempoleirado e com sua matula nas costas pronto pra pegar o rumo de
casa.
Devagar
o resmungueiro tomou jeito de proza, bem mais calmo Joaquim danou em uma treitagem
de conselho para convencer o Zé da problemática do trem, acreditava de toda
forma que era preciso envenenar a velha vinte, e matutava uma forma de resolver
o problema.
Acho
por mio oce leva num desses povo que faz bulinancia de feitiço, tem treita
pesada que envenena arma, e dispois de envenenada bicho nenhum mais escapa, diz
o povo que aquele veio benzedeiro do riachão, lá na Caburé o tar de Bastião é que
tem feitiço bom de envenenar arma de cartucho, mas num sei não, tem tumbém o
tar do Zé Maruco, e outros que o povo proseia por ai.
A
esse ponto da conversa Joaquim já tinha picado o fumo, colocado na paia e já
beiçava pra fechar o palheiro, foi quando ele tirou do bolso a binga para tacar
fogo no pito, foi que o Zé começou a descer do trepeiro, e com pouco prazo logo
estavam rompendo o trieiro.
A prosa sobre o assunto foi crescendo,
enquanto Joaquim resmungava o leriato, o Zé apenas caminhava pensativo e a cada
passo dava acarinhava o cano frio da velha cartucheira imaginando o porquê do
ocorrido e Joaquim continuava a falar.
Mas
diz o povo, que se fizer treita de venenar arma tem que cumprir regra
direitinho, se der estorvo no combinado, nunca mais acerta nada, arruína de vez
a serventia de matança dela, ai cabou, pode inté jogar no mato porque só vai
ter préstimo pra mó de esfugentar as maritaca na roça de milho, nada mais ela
mata.
Tem
muitas formas de negoçar o envenenamento de arma, já ouvi por demais falar
nesse assunto, finado pai dizia que nódia de bananeira três sexta feira santa é
supimpa, vovô já apreciava urinar no cano toda vez que vortava da esperada, mas
tinha que ser na hora grande, meia noite em ponto, e mais ainda, tinha que ser
noite que se ouvia sete piado da mãe da lua antes do clarear da cheia, o Veio Amâncio
diz que nada mio que colocar uma jararaca por sete dias dentro do cano, ai vixe
Maria, num escapa mais nada, a bicha fica cortadeira e derrubadeira como nunca
foi.
Agora
esse trem assim desatinado sem veneno, num vale de nada, inté avuante foge
baliada, dessa forma ela só corta o coração da gente, que fica apertado por
demais em perder caça ofendida, é sem base compadre, sem base, ocê tem que dá
jeito nisso, tem que mandar envenenar esse trem, ai que quero ver se tem porco
duro de morrer, quero ver paca veiaca pular no ribeirão pra morrer burbuio
abaixo dando trabaio de procura, quero ver compadre, quero ver.
Nesse
momento eles pararam a caminhada, uma pausa pra descanso, sentaram num toco
caído e do bornal logo saiu uma garrafa de pinga brejeira, o preparo de um pito
e uma boa dose na branquinha era o que o Zé precisava para acalmar os desatinos
da cachola, enquanto isso Joaquim tagarelava sem parar, ele depois de duas
talagadas apenas olhava o companheiro enquanto bolinava com as mãos tremulas a
velha 20, talvez atazanando os pensamentos no rumo do cateto que ofendido deve ter morrido longe e agora
somente teria serventia aos urubus, na mesma hora escamoteou o cano, rumou para luz
da lua e fitou por dentro dele como quem queria ver onde tal feitiço faria
morada ali dentro.
Logo
Joaquim notou que estava falando sozinho e que Zé estava por demais longe
daquela proza, então jogou tudo no bornal levantou poeira no trieiro.
Pouco
tempo depois, já em casa Zé perdeu o sono, e ali deitado oiando pra o telhado e
curiando as formas das pequenas rajadas de luz da lua que rompiam o velho
talhado da tapera, treitou o que faria assim que o sol desce menção de vida,
fazendo o galo cantar na cumieira do paiol.
Então
o pequeno Zé não se deu por rogado, na primeira hora do raiar do sol, já estava
resmungando no alpendre calçando a bota e grunhindo com os cachorros, o fogão
de lenha lambia de fumaça a cobertura pintada de preto pela folhigem da lenha queimada,
no beiral o bule cheio de café e a frigideira de ferro grosso de fazer beiju, de
bucho forrado, empoleirou na velha mula
Azulona e chacolejou mundo afora.
Ia
ao encontro do famoso Veio Bastião, curandeiro dominadeiro de reza secreta,
conhecedor dos mistérios das matas, espriteiro afamado e recomendado da região,
benzia menino de quebrante, rezava fazenda cobrenta, espinhela caída, oio gordo
e inté dizia os mais afoitos expursava o coisa ruim.
De
certo envenenar a veia vinte seria por demais um café pequeno pra quem tem
tanto atributo divurgado, a peleja éra de uma légua e logo entraria nas posses
da Fazenda Caburé donde desde a infância vivia o velho curandeiro, o sol
começava a quentar quando a casa simples de teiado torto brotou no oio do
iniciante caçador, o coração treiteiro de mateiro bateu disritimado na
esperança mocha de ter a arma mais envenenada da região.
O
Veio Bastião já estava no terreiro com o chapéu na mão abanando dando as boas
vindas, como se já divinhasse o motivo da visita, encabrunhado mas sem opção
tirei o chabeu poido e empoeirado e banei tumbém, abri o colchete, passei, fechei,
desapiei dando um bom dia esturrado enquanto amarrava a mula no mourão da
cerca.
O
Veio me oiando com um oio aberto outro descanchado pitava seu cachimbo e barforava
uma fumaça de cheiro doce no ar, e antes mesmo de iniciar o prozeiro, desbainhei
o canivete corta fumo e danei no preparo de um paieiro, no lombo da mula o saco
de linho amarrado levava um carote de cartuchos e a veia vinte toda descanchada
pra mó de aprumar o volume.
Bastião
veio com seu andar manso e maquinando treta me apertou a mão, logo foi de
encontro a mula, alizou a Azulona que bruta por natureza num dava préstimo pra
estranho, mas pro Veio fez de educada até por demais sem murchar as orelhas nem
dar sapateado, apenas baixou a cabeça feito dama e se deixou acarinhar, eita
Veio treiteiro, de certo fez arguma reza e já deve de ter feito essa tramoia de
causo pensado só para impressionar.
Ai
num aprumar de estalo de dedo pegou no saco de linho e oiando com tom de
desafio me perguntou...
É
o motivo dessa andança que ta dentro desse alforje improvisado?
E aparpando o conteúdo ensacado ainda retrucou, tá parecendo um pau de fogo
esse trem uai...
E
caiu numa gargalhada sem rumo nem sentido, mas se ele queria me agoniar,
conseguiu, porque me fez repiar todo talo do espinhaço e secar a garganta, logo
indagando e sabendo o motivo da minha visita, apoiado em sua bengala, um talo
improvisado de Pau Pereira rodou o terreiro coiendo um mole de ervas, uma aqui
outra ali, já num rezadeiro baixinho como que se preparando para o trabalho de
envenenamento da veia vinte que eu nem tinha seguer mencionado, eu acompanhava
calado meio que sem jeito sem entender o tar procedimento.
Vortamos
para o beiral da casa e ele sentou num toco de emburana e faz mensão para que
eu sentasse tumbem, meio sem saber o que fazer, sentei e abri os braços feito
urubu se secando ao sol, e o Velho bastião começou a rezação, ora batia o ramo
na minha cabeça, ora nas ancas, ora nos ombros como que fazendo o sinal da
cruz, e isso se deu por bom prazo, inté que findado a benzida o gaio mucho e
avariado foi jogado de lado dentro de uma bacia esmaltada de cor branca.
Pensei
desatinado, uai esse trem num ta certo não, e a tramoia no cano, quando ele vai
ajeitar isso? Foi quando ele soltou a proza.
Eu
sei o que ocê veio fazer, quer enfeitiçar o pau de fogo, feitiço de espingarda
tá esprito e no dedo do caçador e não em tramoia de cano, como muito desavisado
leva conversa por ai, levanta Zé, vamo ali visitar uns amigo.
Pegamos
um trieiro pisoteado que rompia para o fundo da roça, bem já beirando a cerca
maltrapilha de arame farpado e farpas de pau fino e seco a chama espinha de peixe,
chegamos a um pé de caju, este, baixo e retorcido como que por falta de terra
boa, abrigava escanchada na primeira forquilha uma caixa de marimbondos exu.
Exu
é marimbondo duro de incarar, valente e de ofensa doida, inté criação teme ele,
diz o povo antigo que o nome faz menção ao tinhoso, de tão praga ruim que o inseto
é, só de ver aquele muntuado de praga ruim já dei três passos para traz e ainda
inocentemente adverti oVeio Bastião.
Home
cuidado oia ai a maloca de Exu.
Ele
tranquilo tirou minha mão que fazia barreira no seu peito e chegando perto da
morada dos temidos encrenqueiros, faz uma benzedeira esquisita e foi chegando
com a mão inté que escolhendo pegou um dos marimbondos pela asa sem ser picado
nem atazanar o enxame, e me pediu o dedo, o dedo de tiro, rumou a bunda do
ofendedor vespideo no rumo da ponta do meu dedo indicador o afamado dedo de
tiro, e fincou o bicho sem dó, que me picou numa lapada que parecia ter
acertado uma paulada de tição de brasa, oita trem pra doer.
Dei-me
num puladeiro desatinado, segurando a ponta do dedo apertando para calmar a dormência,
e com uma vontade doidia de axingar o veio de tudo que é nome feio que num se
deve falar, de certo ele sabia o que passava na minha cachola, porque ficou me
fitando serio e com cara de aborrecido.
Ora
bolas, eu é que deveria de se aborrecer, afinal o dedo doía e já estava pra
mais de inchado, a dor ia e vinha latejando num descompasso feito coração de
pião apaixonado.
Voltamos
pro rumo da casa o veio na frente e eu atrás resmungando comigo mesmo, que
diabos eu estava fazendo ali, o dedo duro inchado e doendo pra amuar, então ele
mandou buscar a vinte e mais quatro cartucho, sai de passo pesado pensando, então
como eu vou atirar, como com esse dedo nesse tipo.
Quando
voltei ele já tinha ajeitado todo leriato, colocou quatro cabaças secas pendurada
na cerca a mais de trinta passada, cabaça miúda, pro porte de uma avoante, com
um sorriso amarelado mandou eu fazer ponto e atirar, o dedo latejava e por isso
tive que puxar o gatilho devagarinho e usando o centro da falange, pooouuuu...Ecoou
o disparo e a primeira cabaça estourou voando pedaço e caroço pra todo lado, mas
logo veio o grito.
Agora
queta....Num vai mirar muito não, apruma a arma de uma sé vez e atira...
Levantei
a velha vinte já com o dedo em dormência iniciando a lenca do gatilho, de forma
a romper a folga e , pooouuu e a outra também estourou, fiquei empolgado...
Agora
oce fica de costas, vai virar e atirar rápido na terceira cabaça.
Virei
meio atordoado, um febreiro parecia ter tomado conta do corpo, um empoleiro na
pele corçava por todo corpo e inté a língua tava grossa, debaixo do braço um
íngua danou a doer, mas seguindo a ordem me virei de com força e no mesmo
procedimento estourei a terceira cabaça.
Agora
oce oia o ponto da quarta cabaça, finca bem onde ela tá na sua mente, dispois fecha
os oio e atira.
Fechei
os olhos depois de marcar o ponto, o dedo inchado fazia com que eu puxasse o
gatilho de forma lenta e cadenciada, tirando a folga devagar, pooooooouuuuu e a
quarta cabaça também se estilhaçou.....
Abri
os olhos impressionado, que diacho de feitiço era aquele, voltamos devagar para
a casa, o Bastião caminhando lento nada dizia, eu menos ainda, estava
encafifado com todo o ocorrido, ao chegarmos Dona Euvira já vinha com um café
coado de novo e umas chicrinha coloridas, cada uma de um tipo diferente, coisa
de ocasião.
Depois
de moiar a goela com um bom café o beiço logo pediu um pito, mas ainda
estávamos no meio do furdunço da benzeção, o tal envenenamento da velha vinte,
voltamos pro terreiro e o Bastião colocou ela por sobre um veio banco taiado na
madeira branca e mole da barriguda, e com uma gaia de arruda com guiné fez um
embolado de palavreado baixo e sem sentido, resmungando o nome do Espitro Santo
e São Sebastião, benzia a espingarda indo e voltando no sinal da cruz, e logo a
foiagem muchou e o veio danou num suadeiro de dar agonia, quando ele quetou já
agoniado perguntei.
E
Dentro entro do cano num vai por nada ?
Ele
pegou ela, escamoteou e virou o cano no rumo do céu e olhou por dentro, como
fazendo pose de pirata em mastro de navio olhando se tem terra a frente, baixou
a arma e olhando nos meus olhos me disse.
Não,
o cano é a alma da arma, e como dizia o Messias. De que se vale ganhar o mundo
e perder a sua alma ?
E
essa 20 esta com a alma ainda salva, oia por dentro do cano dela como que ta
bem alvim, brioso de dar gosto, então cuida da alma dela, mantenha limpo de bem
lustrado, e vai ter muitas alegrias, a arma num tá envenenada, ela ta benzida,
rezada, pra mó de num faltar a mistura na sua mesa, mas tem que me prometer uma
coisa.
Nunca
vai matar por matar, somente o que precisa para comer e alimentar sua família,
no dia que matar simplesmente por matar, ela vai perder o encanto, e não só o
encanto da arma, mas o encanto seu próprio encanto de amar e ter felicidade na
caça, porque essa é a lei do verdadeiro mateiro, respeitar, preservar para
nunca faltar.
O
dedo inchado fez você aprender que disparo se faz com desgatilhada mansa, o
dedo tem que cochilar e tirar a forga antes do estampido, o ponto do olho deve
de alinhar bem com a caça e a massa do cano, é fio na ferroada do Exu você
ganhou dele a treita de ser certeiro, na oração ganhou a benção de São
Sebastião o santo caçador, agora ocê pode ir....
Agradeci
prontamente e fiz a jura da promessa, satisfeito por demais, amuntei na mula e
segui o batente do rastro na estrada, a velha vinte ensacada batia
desconcertada na anca da montaria, agora benzida e não envenenada como me foi
ensinado, o sol firmado anunciava a hora do comer, na minha frente o mundo, na
minha cabeça a certeza da missão resolvida, no passo manso da azulona o rumo de
casa, onde a mata e a beira do rio descansam na mão do Criador de braços
abertos me convidando para boas esperadas, e bem antes que as águas cheguem e
comece a recria, quero pegar uma boa leitoa para a passagem do ano......
O SERTANEJO
Ele
me perguntou se eu conhecia São Paulo, e se realmente lá tinha prédios tão
altos que tocavam as nuvens do céu, perguntou se o mar era realmente azul e se
a água era muito salgada, indagou ainda sobre a grande quantidade de carros que
infestavam a cidade e se realmente a fumaça tampava todo céu, sentia que seus
olhos brilhavam a cada palavra da minha narrativa, talvez imaginando os
detalhes do que eu relatava sobre os avanços da tecnologia e da arquitetura em
um mundo desconhecido dos seus olhos.
Mas
quando comecei a retratar as consequências do crescimento da população de das
cidades seus olhos entristeceram, e seu semblante se tornou pesado, a cada
pausa eles contorciam o olhar como que em um sentimento de dor, e retrucavam um
huhum como que de descredito das atitudes dos homens.
Talvez
eles imaginassem o quanto ruim era o meu mundo, ausente da natureza, composto do concreto, do asfalto, era uma mistura de tons de cinza mortos, com
rios que cortavam a cidade com agua contaminada, podre, sem vida, poluído pelo
lixo e dejetos humanos, que bem diferente do sertão o amanhecer era anunciado
pelo som ensurdecedor dos automóveis engarrafados nas avenidas, abarrotados de
gente que não dão um bom dia a ninguém, um imenso mar infestado de pessoas
solitárias e perdidas, uma grande multidão amparados em uma vida de insanidade.
Foi
se assim nossa conversa, sentado a beira do alpendre aquentando no fogo do
velho fogão de lenha, onde as labaredas clareavam nosso rosto, e o cheiro do
café atinava o olfato, depois de muita prosa Seu Dito começou a falar.
Destrambelho
doido esse desatino de cidade, troco minha vidinha daqui da roça por isso não,
no terreiro tem fruteira e a todo prazo cada uma tem sua fartura, no chiqueiro
tem porco gordo, carne macia e gordura que dá aprumo de sabor do de-comer, a
mistura é sempre farturada, por vez tem peixe fresco pego na linhada lá na
barragem, traíra de sol, das vez....Tem caça, carne de mateiro, porco queixada
ou mermo a saborosa paca gorda com mais de dedo de toucinho.
Aqui
o despertar é tocado a milho, galo índio cantador, logo cedo descamba no
berreiro por riba do paiol dando conta que o dia labuta com o fim da noite
beirando o clarear, a vacada já ta na beirama do curral a espera da ordenha,
tem queijo fresco, coalhada do dia, milho socado no pilão vira cuscuz, vira
bolo, tem macaxeira cozida derrete no beiço, e ralada na casa da farinha se faz
puba de primeira.
Ligo
meu radinho de antena embolada de lã de aço, no amanhecer do dia pra mó de
ouvir meu Tião Carreiro, enquanto a passarinhada apruma no terreiro, ioia que
num tenho letra, num sei nem assinar o nome, mas sei labuta na terra, conheço a
lida do gado, as manha que cada trem dessas beira de mato, sei a fala dos
bicho, conheço cada vivente dessas brenha.
Na
lida da minha vida, minha luta é com a terra, empunhando minha mão calejada no
cabo da enxada, meu relógio é o ponto do sol, o piar da Jaó, do Inhambu, o canto
da perdiz, eu sei que no pé da serra no
lado do nascente é cobrento, eu sei que se o João Corta Pau canta mais quando
beira a chuva, que o João de Barro faz a porta da sua casa pro lado que venta
menos, da ciência da vida dos bicho muito eu aprendi, trem passado de meu avô,
de meu pai.
Aqui
oce sabe a casa é simples, não tem luxo, mas tem vida e quem tem bom coração é
bem vindo, tem sempre um agrado pra
mioar a garganta pinga boa do engenho, eu sou caipira e me orgulho disso,
porque nasci aqui, assim na mão da parteira, num gosto muito de ir na cidade, o
trem movimenta e desatina meu entender que logo fico ruim da cachola doidio pra
vorta pra roça.
A
conversa foi cortada com Dona Maria servindo o café, a xicara colorida de asa
quebrada tinha no seu interior o aroma saboroso do café da roça, logo seu dito
tirou do bolso a tira de fumo, picou oiando a lua e escutando o canto
desajeitado do Murucututu, do bolso puído da camisa de linho tirou a palha escolhida
a dedo da parte interna do milho, palha fina cortada com cuidado, e ali enrolou
o pito, com a binga tacou fogo e continuou a prosa.
As
vez eu paro a lida e sento a sobra de uma boa arvore só pra admirar a façanha
dos bicho, dos inseto, dos passarinho, e fico um eito de hora a aprender com
eles, seja da pequena abelha, da formiga ou mesmo da grande anta que tora o
mato nos peito, eu sempre tiro uma serventia de proveito de algum ensinamento.
Sei
que num sei prosear feito o povo da cidade, sei que num tenho letra, mas sei
que a felicidade pousa aqui nessa casa simples, e ocê sabe disso meu amigo, e
sempre vai ser bem vindo, vou ficar de oio no mato, nas fruteiras, nos trieiro
das Paca, no bebedor da Mateira, no lameiro dos Queixadas, na batida do Cateto,
e te espero pra caída da mirindiba, pra pescada de surubim no poção, para uma
outra prosa.
Meus
olhos se encheram de água, o peito se fez pequeno e a noite foi pequena para
tanta prosa, e a prosa foi muito para me ensinar, e atenuar a minha admiração
pelo simples sertanejo, a cada momento, a cada gesto, a cada palavra, essa
admiração se torna cada vez maior, como me sinto bem aqui, sentado nesse alpendre,
ouvindo os causos do Velho Seu Dito, como é bom o cheiro do mato, ouvir o pio
da coruja, ver o desatino desengonçado do sobe e desce do Curiango no terreiro
comendo insetos.
Ë
um sentimento estranho que aperta meu coração quando olho embaixo da mangueira e
vejo o carro com toda tralha arrumada, e quando olho no relógio e vejo que em
poucas horas estarei pegando a estrada voltando para a cidade, o que me conforta
é saber que um dia, voltarei para o meu sertão do Goiás, mas para ficar, para
sempre até que cheque o fim dos meus dias.
Bello
03/07/2014
8 ANOS E UMA POLVEIRA
Eram
meados de setembro e a seca tinha tomado conta de tudo, o marrom acinzentado
dominava a campina, e ao longe o capão ainda mostrava um pouco de verde,
naquele tempo o rio fedia a peixe e a estrada de terra que ligava a sede da
fazenda era estreita, cortava dois capões de mata fechada, tinha lugar que o
sol não chegava, sentado no velho jipe ia olhando atento para ver os
catingueiros estourarem a frente do velho carro, às vezes os caititus cruzavam
a estrada ao longe, era um tempo que eu sinto saudade, eram 7 horas de vigem
para rodar 250 km de tão ruim que era a estrada, uma vigem ao som dos pássaros
do vento, era mata e bicho pra todo lado, eita tempo bom...
A
velha sede era o meu paraíso, tinha meu estilingue e meu bornal, no fogão de lenha curava as bolas de barro
com cimento que preparava como munição, amanhecer o dia na palhada era o que
mais amava nesse mundo, nada melhor que escutar o barulho fofo quando alvejava
uma inhambu, e ver as penas voarem, no
almoço era farofa de rolinha e o grande
sonho, conseguir pegar uma pomba
verdadeira ou uma perdiz...Era o maior troféu de um menino franzino de 8 anos
que amava as férias na fazenda...
O
Dito nosso caseiro o qual chamava carinhosamente de Ditoso, morava na casa de
baixo, dormia em uma rede e na parede algo que mais parecia um sonho, não
consigo contar as horas que passava sentado olhando para a velha polveira , seu
cano longo com coronha escura e uma bandoleira de couro cru era algo
inatingível, minha mente ia longe, me imaginava cortando a campina em direção
ao capão, carregando ela no lombo, negaceando os campeiros ou esperando um
catingueiro espirar....Ou até quem sabe os marrecos na lagoa, o bando de
catetos ou as capivaras que davam trabalho destruindo o milharal e o
canavial....
A
noite a fogueira iluminava a mangueira e as outras arvores do pomar, eu sentado
no banquinho a luz da lua, com os olhos estatelados me colocava a escutar sem
ao menos mexer um só nervo os causos contados pelo velho Ditoso, causo de onça,
das caçadas de queixada, do homem que virou lobisomem pra poder caçar pois não
tinha como comprar uma arma( ainda vou te contar esse caso ), são histórias que
estão dentro da gente e nos acompanharão até a morte, são momentos mágicos que
o tempo jamais poderá levar...Ali ficávamos até a meia noite, quando o sono ia
chegando junto com a friagem que vinha do córrego que passava logo atrás da
casa, era hora de dormir, na cama a mente rebuscava um mundo de causos e contos
que durante toda a infância eu ouvi do meu velho avô, e do amigo Ditoso...
O
dia amanheceu lindo e o sol se avermelhava no horizonte, de estilingue na mão e
bornal cheio subi rumo ao capão, logo ao entrar depois de cortar toda campina,
fui beirando a mata, e quase que meu coração parou, me deparei com dois
campeiros em baixo do frondoso pequizeiro, saboreando suas flores brancas que
cobriam todo o chão, acho que foi a visão mais linda que já contemplei, e ali
parado por um tempo que não sei estimar direito, fiquei olhando eles, até que
um me notou e soprando, chamou o companheiro que correu mata a dentro...eu
continuei ali parado, contagiado pela imagem que até hoje 34 anos depois consigo ver nitidamente....
Continuei
a caminhada, mas minha cabeça buscava uma forma de pegar um bicho daqueles e me
veio a mente...A polveira do veio Ditoso...Mas como convencer o veio a me
ajudar nessa empreitada???A barriga anunciava que era hora do almoço e já tinha
a farofa garantida, afinal já tinha três inhambus no bornal, a pescaria da
tarde tava perdida, pois vou tirar a tarde pra atazanar o veio, tenho que
convencer ele a ajeitar a polveira pra eu voltar lá e pumba...Pegar um campeiro
daqueles...
Chegando
na casa o cheiro da galinha caipira cozinhando no fogão de lenha ia longe, e o
veio já tava arrumando a mesa, meus olhos brilhavam e contei o caso pra ele, ta
certo que aumentei um pouco o tamanho dos campeiros e algumas coisas mais, mas
fazia parte da estratégia de convencimento que havia traçado...Ocê tem que me
emprestar a polveira, eu vou de ponta e pé hoje a tardinha ou amanha cedo e
pego ele Ditoso, faz isso por mim homi...Por favor...Isso é meu sonho...Me ajuda
vai...
Sua
gargalhada ecoou inté o curral, ...Menino, nesse caso ocê faz a espera..Disse
ele, negaceando é difícil, é mais fácil esperar...
Esperar!!!!
Eu imaginava como seria apesar de já ter
escutado tantos causos de espera, não liguei uma coisa a outra, nem tinha
pensado nisso...Fala Ditoso como vai ser essa espera, vai me fala..
Tirando
o velho chapéu da cabeça e amassando ele no peito o veio abaixou e olhando nos
meus olhos começou a falar.
Ocê
sobe na arvore, apruma a rede, tem que ta firme e segura, senta e fica bem
quietinho, de polvera em punho, de ouvido aberto e respiração mansa, ocê vai
ouvir a mata, sentir a mata e saber que o
campeiro ta chegando, ele pisa manso, os oio tem que ser de águia,
muitas veis nois vê o trem mas num ouve a pisada, ai quando ele der ponto oce
se ajeita, com carma pro coração não sair pela boca, o corpo da gente treme, a
boca azeda, mas tem que ter paciência e carma, ai ocê faz pontaria, procura o
sovaco do bicho e tenta escutar o coração dele, mira bem, e pumba, bota ele no
saco...Mas oce é muito novo pra espera, tenho medo, arma é coisa séria, e
menino é trem danado, inda mais ocê que é danado pra mais de hora...
Não
agüentei já comecei a chorar pedindo pra ele me ajeitar pra espera, me
emprestar a veia rede e a polvera, ia ser um segredo nosso, por favor, acho que
falei mais de mil vezes essa palavra naquela hora , mas o veio nem deu assunto,
apenas falou...
Vamo
armoça, vai senta a mesa que vou ajeitar seu prato...
Comemos
calado, minha fome tinha ido embora, estava ansioso, desiludido e pensativo,
comi apenas um coxa da galinha olhando para o lado, contemplando a campina e me
imaginando na rede no alto do pequizeiro com a polveira em punho esperando o
campeiro chegar...
Quando
deram umas duas horas da tarde, Ditoso me chamou gritando, eu tava deitado na
rede no alpendre da sede, demorei a levantar talvez pelo rumo da conversa que
tivemos durante o almoço, estava triste e desiludido, todo sonho parecia
distante, mas quando dei a volta e olhei para debaixo da velha mangueira, meus
olhos brilharam, minhas pernas tremeram e meu coração parecia que ia
explodir...O veio Tava com a rede no ombro, com a polveira em uma das mãos, na
outra a lanterna e em seu pescoço um bornal de couro cru, onde ele guardava a
pólvora, bucha, chumbo a espoleta e
outros apetrechos mais...
Vem
disse ele, vou te ensinar como se faz na espera, presta atenção. Primeiro oce
vê donde o bicho ta chegando, oia a arvore e procura a melhor posição pra
apoitar a rede,num pode ser muito baixo, alto demais tombem num carece, e apontando me mostrou um local bom pra
amarração..Ele tirou do bolso uma cordinha, ajeitou a rede em forma de trouxa,
amarrou com uma ponta da corda, cruzou a bandoleira no peito e ajeitou o bornal, amarou a outra ponta no cinto e subiu na
arvore, chegando ao ponto puxou com a cordinha a rede, desfazendo o nó e
segurando bem amarrou o bornal e a bandoleira em uma forquilha, bem apoiado fez
a laçada da rede, me dando orientação de
um nó seguro, e sempre perguntando se eu tava prestando atenção, após apoitar
sentou na rede, se ajeitou com calma, e com a cordinha fez um estribo, quando
viu que tava seguro e confortável pegou o bornal e a polveira....
Com
o olhar maduro de mateiro veio criado pela vida a beira das matas, passava ali
o que sabia de melhor e por isso se sentia o perfeito professor e mestre.
Retrucou quando percebeu que eu estava distante em meus pensamentos.
Presta
atenção, ocê quer ou não quer ir pra espera, oia é muito importante oce ta
tranqüilo, até pra num ficar mexendo, quanto mais quieto ficar melhor...Ai ele
foi gesticulando mexendo bem devagar a
cabeça olhava de um lado para o outro, por vez colocava a mão no ouvido fazendo
concha para escutar melhor, de repente firmou o olhar ao longe, e foi
levantando levemente a polveira rumo ao pé de amora onde tinha uma lata velha
jogada e BRUMMMMM...Atirou derrubando e furando ela toda...
Tomei
um susto danado, mas nada melhor que uma aula pratica para encorajar um pequeno
caçador....
Descendo
da arvore ele sentou na raiz da mangueira e me olhando nos olhos começou a
segunda aula...
Fio
....Disse ele...Arma é trem perigoso, oce deve apontar sempre ela pro chão ou
para o céu, nunca aponte pra ninguém, dedo no gatilho só na hora de atirar, o
bicho é doce, oce tem que ter cuidado, tem que apoiar bem a soleira no ombro e
firmar igualando o ponto na pá do bicho, o importante é sempre um bom tiro, pra
nunca deixar o bicho morrer longe, e só atirar em trem que é caça de comer, só
mata o que ocê pode carregar e o que realmente vai precisar, de preferência
pega o macho, deixa a fêmea pra procriar isso é muito importante, dessa forma
vai ter bicho sempre, ele olhou para o céu e se levantou, recarregou novamente
a bruta e disse:
Agora
mira lá na lata e atira igual te ensinei, imagina ser o campeiro....
Ajeitei
a bruta no ombro, igualei a mira, com a ajuda do veio amigo e BRUMMM,,,,
terminei de destruir a lata, agora pense numa festa, era o inicio do inicio,
algo que levaria para sempre no sangue e na alma, um dos melhores dia da minha vida....
Vai
lá meu fio, toma um banho só de água, sem sabão, coloca uma roupa escura sem
cheiro e a bota, que eu vou ajeitar a
traia, vamos buscar esse campeiro....Aquilo entrou na minha mente como uma
bomba atômica a destruir toda a desilusão que antes havia se instalado ali,
corri pro banho, me vesti e em menos de vinte minutos eu já tava na casa do
Ditoso pronto pra empreita...
Saímos
caminhando rumo ao capão, de longe ele já apontava o pequizeiro de folhas
verdes que se destacava diante das outras arvores, seu tronco largo e
retorcido, facilitava a subida...Ali, apoita ali, me mostrando o lugar que eu
deveria amarrar a rede, naquela época de
menino subir em arvore era café pequeno, por isso ajeitei tudo mais rápido que
pulo de onça, sentei me ajeitei, ele subiu me entregou a polveira, recomendando
cuidado pois estava carregada, era só puxar a orelha armar e apertar o gatilho,
pendurou o bornal do meu lado falando manso, tinha um lanche, água, lanterna e
uma garrafa para urinar dentro....
Achei
que ele ficaria ali comigo, mas descendo preparou um palheiro, acendeu, deu
umas pitadas, me olhou nos olhos e disse:
As
9:00 hs a lua sai, venho te buscar, agora é com vc, fica quietinho, assunta,
escuta, se for de ser ele entra, se tiver paciência e seguir o que te ensinei...É batata...Nós
janta campeiro....E saiu andando rumo a sede, o silencio tomou conta de tudo,
podia ouvir meu coração bater, os passarinhos cantavam e a voz do vento passava
por entre as arvores, me senti livre, nada melhor que o sabor da liberdade.
Chapppp,
chaaaaaaaaaaaap, pisava na folha seca algo grande, meus olhos procuravam em
busca do que poderia ser, o coração disparou, e uma tremedeira doida tomou
conta do meu corpo, mas de repente um pio ecoou e pude ver que era apenas um
casal de Jaó procurando alimento, e as horas foi passando, um barulho aqui
outro ali, um grupo de gralhas gritou na campina, depois quietou, já beirando o
capão foi a vez do bando de Cancão anunciar que alguma coisa chamava sua
atenção, depois de algum tempo escutei um pisado leve, já beirava as 17:30 hs e
o sol fraco já anunciava que a noite ia ser longa, de
repente.................................Surgiu o casal de campeiro,
desconfiado, olhando para os lados e revirando as orelhas assuntando o som da
mata, ora andava, ora parava com a pata da frente suspensa, como quem está
pronto pra correr..
Naquele
momento pensei que ia morrer, meu coração disparou descompassado, tremia muito
e a boca azedou, a respiração ficou ofegante, assim como falou o Ditoso,
pensei, tenho que ficar calmo, respirei fundo e devagar sem tirar os olhos
dele, e para acalmar comecei a observar os detalhes daquele momento, o macho
tinha um chifre de três pontas de cada lado, era maior que a fêmea, e bem mais
desconfiado, seu pelo escurecia no lombo e clareava ao chegar na barriga, seu
casco preto parecia engraxado, isso foi me
relaxando assim pude respirar melhor, de repente ele começou a comer,
devagar, uma flor aqui outra ali, cheirava antes de comer como quem estava
escolhendo, um sempre próximo do outro, e foi chegando, pouco barulho e sempre
atento, bem devagar até que entrou no ponto de tiro, levantei a polveira
devagar, bem devagar, ainda tremia muito e senti dificuldade de me controlar,
puxei a orelha engatilhando a bruta com todo carinho do mundo, meu dedo batia
no guarda mato de tão nervoso que eu tava, ai ele virou de lado abaixando para
comer mais uma flor, me dando a pá, foi a hora certa, chequei a sentir a batida
do seu coração....BRUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUMMMM....Puxei o dedo, a fumaça
tampou minha vista e o bicho pulou caindo de lado, tentando levantar, mas caiu
novamente e ficou com as patas ciscando o chão, nesse meio tempo nem vi pra
onde a fêmea correu, só sei que meus olhos não acreditaram no que estavam
acontecendo ali....Putz...pensei....Eu consegui, eu consegui, eu
consegui...Gritei com todas as forças que tinha no meu peito...
Fiquei
ali estatelado olhando até que ele quietou, estava morto, desci e cheguei perto
do bicho, com medo dele levantar e correr, fui negaceando devagarzinho,
encostei a ponta da bota no casco do pé, e nada, na coxa, e nada... É tava
morto mesmo....kkkkkkkkkk
Sai
correndo rumo a casa, deixando tudo pra traz, o sol já estava por se esconder
atrás da mata e a noite vinha chegando, corri como nunca tinha corrido antes,
menino novo tem fôlego, cheguei molhado de suor, o veio Ditoso se espantou... O
que aconteceu, retrucou agitado, e eu pulei no seus braços, derrubando ele no
chão e gritando....Peguei ele...Pequei ele...Vamos lá buscar...Rápido vamos...Ele
fez a maior festa mas parecia ainda não acreditar, então pegamos o rumo do
capão novamente, a noite já tinha chegado, como tinha deixado a lanterna lá a
saída foi irmos com a velha lamparina de óleo.
Chegando
lá o bicho tava caído, em meio as folha secas que cobriam o chão, Ditoso
abaixou, conferindo o ferimento, virou o campeiro de um lado para o outro
dizendo... Tiro bom, esse ta com o coração furado, parabéns fio e me abraçou um
abraço forte e confortável...Agora ocê tem causo pra contar pros seus netos,
puxou uma cordinha do bolso, piou o bicho enquanto eu cuidava de tirar a rede e
juntar a traia, passei o bornal no
ombro, fiz uma trouxa com a rede e amarrei a cintura, com a polveira na mão direita e a lanterna na esquerda eu
tava pronto, ele jogou o bicho nas costas e e seguimos pra
casa, a lua começava a nascer mas de longe a gente podia ver a luz da sede.
A felicidade estava ali comigo, me senti
especial, forte, afinal eu era apenas um garoto de oito anos com uma polveira
nas costas um bornal de couro cheio de traia, com meu primeiro campeiro e uma
grande historia pra contar, naquele momento descobri que tinha encontrado a
coisa mais gostosa de fazer nessa vida, algo que seria para sempre, caçar,
assim como meu avô, assim como meu pai......Estava no sangue, na alma de
caçador, estava em mim....
Bello
02/06/2012
DOIS PREDADORES E UM ALVO
( uma homenagem ao amigo Jorge Sá)
Sá, mateiro por natureza, carioca, nascido em Campos, homem de sorriso largo e poucas palavras, com ele conheci muitos segredos das matas e campinas desse Goiás, muito jovem saiu de casa para lutar pela vida e após alistar-se no exercito em busca de segurança e uma carreira, foi designado para Brasília, para o Regimento de Cavalaria de Guarda o RCG, amante das coisas do mato, das pescarias e caçadas, seu passa tempo preferido era a criação de Bicudos e Curiós, a qual passava horas com a gaiola na mão apreciando seu canto, principalmente o Paracambi.
Logo que se instalou no Centro Oeste, descobriu a vasta biodiversidade da região, naquele tempo meados do ano de 1968, Brasília se fazia feita cidade de interior, eram circuladas de rios, matas, cerradão ermo, campinas e riachos, repletos de boa caça e bons peixes, naquela época a lavoura ainda era pouca e estava tudo muito preservado.
Logo fez boas amizades, coisa que tinha um enorme dom de realizar e entre os amigos se encontrava alguém muito especial, Jorjão, que com o tempo se tornou seu parceiro de caça por longos anos. Jorjão era caboclo rustico, de voz sertaneja e jeito manso, gostava de uma boa lida no campo, e era um grande conhecedor dos segredos da mata e dos bichos.
Jorge Sá era um cara que sabia chegar e tinha muitos contatos, boas amizades, isso sempre foi fato marcante em sua vida, cativava facilmente o apreço das pessoas, e tinha descoberto uma fazenda muito boa de bode, como eles chamavam os campeiros, a fazenda ficava para rumo de Ceres - GO.
Então marcaram uma saída para o novo ponto, para uma caçada de campo, durante o dia, a qual chamavam de caçada de curso, do jeito que eles gostavam, campeando, negaceando até atingir o alvo e colocar a prenda nas costas.
Depois de tudo arrumado, na época com uma Variant pegaram a estrada, sempre ao som da boa musica sertaneja, seguiram os dois Jorjão homem alegre e Sá sempre com muitas brincadeiras e um bom papo, e após um bom tempo de estrada finalmente chegaram na fazenda, sempre com seu bonezinho camuflado na cabeça e roupas do exercito que era sua marca registrada.
Chegaram cedo ao raiar do dia, ajeitaram a tralha e saíram cada um para um lado, de olho no vento, caçada de campo durante o dia, é assim, dizia o Sargento Sá, se caminha contra o vento, caminhada normal de pisada mansa, sempre de olho, as vezes o bicho esta deitado e se levanta e corre, dá o assopro como falamos, geralmente para entre 100 a 300 metros, indo para um lado e para outro a fim de enganar o caçador, ai é a hora de negacear, se você ver ele primeiro, tem que parar, esperar ele comer, toda vez que ele baixar pra comer você anda, até chegar no ponto do tiro.
Tiro tem que ser cochilado, e calmo, e o ouvido tem que estar atento a pilotada ( som emitido pelo projetil ao acertar o alvo ), e tiro em bode é na paleta, pé do sovaco, que ai atinge o no coração, ponto mortal.... Tudo isso ele aprendeu com o velho Jorjão, mas falava com ar de aluno que virou mestre, empunhando a velha Itajuba 22 LR, ou a 32-20 de um único tiro, naquele tempo nem se falava em luneta, coisa cara e difícil de se ver, mas Sá era atirador nato, e botava no ponto certo e tombava a caça mesmo.
No primeiro dia andaram um bocado e fizeram um prenda, uma campeira bonita que Jorjão tombou e veio carregando nas costas, bufando feito boi brabo, ele num podia ver uma ema, chamava ema de Duelo ,lembro feito hoje, sua voz rouca dizendo...
_ Nego, oia o Duelão ali, nego..kkkkk
A noite pernil de campeira na panela, Sá gostava mesmo era do filé , o lombinho, que tirava com todo carinho e fritava na gordura quente com muita cebola, nada melhor para acompanhar uma boa cerveja gelada, era muito engraçado ouvir ele contando os causos de caçada, ele tinha um jeito peculiar e único de frases e formas que nunca vi em ninguém, saia sempre com algo novo, e seu olho brilhava quando contava suas histórias.
O dia amanheceu bonito, o céu azul turquesa limpo sem uma única nuvem, vento calmo, o dia estava perfeito para uma campeada, logo cedo antes mesmo do sol nascer os dois amigos já estavam no campo, e como de costume combinaram circular alguns campos e se encontrarem mais a frente.
Jorjão partiu para um lado e Sá para outro, mesmo com o dia bonito caminhou até as 10:00hs da manha sem topar com nada, de repente, seus olhos de mateiro avistou uma campeira, tudo estava ao seu favor, o vento estava pouco e soprando contra ele, de forma que a campeira não sentiria seu cheiro, e ele foi negaceando, coisa que ele fazia como ninguém, mas volta e meia a veada olhava para trás e andava cismada querendo trotar, e tornava a parar novamente
Sá logo cismou também, e parado ao pé de um carvoeiro, ficou observando, tentando entender o motivo que estava estressando a astuta campeira, não demorou muito ele viu levantar no capim uma cabeça , e logo baixar, a principio não reconheceu do que se tratava, a campeira hora caminhava, hora trotava e sempre agitada olhando para traz, abanando o rabo e as orelhas em sinal de alerta.
Logo no capim se levantou novamente a cabeça de um animal, foi ai que ele reconheceu ...Era uma enorme onça parda, eram dois predadores e um único alvo, de um lado Jorge Sá com sua 32-20 e do outro a bruta Parda que tão grande que não tinha mais pra onde crescer, e entre os dois a campeira desatinada.
Sá não pensou duas vezes, apoiou sua carabina na forquilha do carvoeiro mirando no rumo que ele calculou em que a onça levantaria novamente a cabeça por entre o capim da campina para ver a localização da campeira, foi o ponto certo, logo ela apareceu e o dedo do experiente mateiro esmagou o gatilho com calma esperando acabar a folga, o gatilho endureceu, ai foi terminar a cursão e............. Bummmmmmmmmmmmmm....
Então o percutor tocou a espoleta, que explodiu, iniciando a queima e expelindo o projetil a grande velocidade, que percorreu o raiamento saindo a boca do cano num estampido que ecoou na campina, girando em torno de sí mesmo, viajou perfeito, e pilotou no pé do ouvido da bruta que deu um salto rodopiando no ar, com um grito mais esquisito do mundo.
Naquele momento a campeira tomou mundo em saltos enormes até que sumiu da vista, e ali ele ficou olhando para ver se da moita que a bicha caiu saia algum resquício de movimento, naquele momento avisado pelo barulho do disparo, Jorjão veio chegando devagar, com aquele jeito de falar que era só dele...
_Nego em que você atirou nego?...
Respondeu o Sargento Sá ainda pausando a respiração...Numa onça...
_Deixa de ser mocorongo..Onça na campina....!!
Isso home e ela caiu dentro daquela moita ali, então Jorjão de arma em punho, foi devagar negaceando, inté que seus olhos de caçador avistou a amarelona ainda batendo a ponta do rabo, com seu ultimo sopro de vida...
E foi uma farra danada dos dois amigos, que levaram essa onça num varão inté a casa e lá tiraram o couro e trataram da carne...
Carne de gata é boa nego...Dizia Jorjão...
O couro dessa onça ficou durante muitos anos na chácara que o Sargento sá tinha pro rumo do Sobradinho, lembro que eu era criança e ele ficava na parede perto da mesa de sinuca.
Hoje os dois Jorge, companheiros de muitas lidas já não estão nesse mundo, se foram para as campinas do Céu, cada um no seu tempo, mas tenho a certeza estão a campear juntos, olhando o horizonte azul, sentindo o cheiro do cerrado, felizes por terem vivido essa vida e ter tirado dela momentos maravilhosos como este.
Escrevi esse causo que é uma história real, em homenagem a estes dois grandes amigos que tive a oportunidade de conhecer, conviver e aprender com eles, isso me faz pensar que tudo tem seu tempo, e que é preciso saber viver, viver com emoção cada instante e fazer da nossa vida algo que vale a pena...
Grande abraço aos dois Jorge Sá e Jorjão que um dia a gente se encontre e possa reviver essa e outras aventuras nas grandes campos do Céu....
Bello 29/12/13
Rapas cheguei a mi emocionar lembrando da minha infância ,meu primeiro tiro tinha entorno de 5 a 6 anos meu pai tinha uma cartucheira Rossi de 2 canos calibre 32 que foi herança de meu avo(hoje e minha e enfeita a parede do escritório da empresa ) ,me ensinou tudo sobre armas e segurança,me lembro como se fosse hoje ,que naquela mesma viajem que sempre fazíamos todas as férias, paresia uma eternidade para chega rrsrs , meu pai e meu tio ajeitando a tralha e pondo o perdigueiro na carroceria do caminhão.
ResponderEliminarRealmente são memorias que marcam para sempre.
Uns anos se passarão meu pai me pós na minha primeira espera eu já com 10 11 anos, só quem já teve essas experiências sabe o quanto e bom.
Bello, você não só é um escritor mas um poeta, suas linhas deslizam como poesia. Parabéns pelos seus "causos" que muito enriquece nossa cultura cinegética.
ResponderEliminarObrigado amigo, fico muito feliz em saber que está agradando os leitores.Ainda mais vindo de você um assíduo leitor da cultura cinegética.....Baita abraço
EliminarHeeeeee bello, esse "causo" me lembrou minha primeira espera, que com os detalhes que vc descreveu tive a oportunidade de sentir tudo denovo!
ResponderEliminarO cheiro da fruta da imburana, o barulho das folhas secas, tinha 12anos mais n era de couro era de pena com uns 35kg, um belo "duelão"!
Como o eloir disse "suas linhas deslizam" e o nosso pensamento vai com elas!
Fico feliz de saber que as histórias fazem os leitores retornarem ao passado, reverem suas vidas, de seus pais, de seus avós,,,,Muito legal..
ResponderEliminarVc escolheu a melhor forma de nos conformar com a vida na cidade meu amigo.Lembrando nos como é bom a vida no campo e o nosso passado feliz. obrigado mais uma vez.
ResponderEliminarMuito obrigado amigo, baita abraço.
EliminarMeu sonho é ver um Mateiro Bello. Mas o bicho está muito escaço por causa de açougueiros que matam para vender a carne e a pouca mata que resta dificulta a procriação dos bichos...
ResponderEliminarObrigado por me fazer imagina o que seus olhos viram.
Obrigado por você caro amigo estar visitando o Blog, fico imensamente feliz por saber que todo o trabalho vem rendendo frutos...Ainda terá a oportunidade de encontrar com o FANTASMA DA FLORESTA, e quem sabe lembrar desse velho escritor e de seus causos...Grande abraço
EliminarLendo mais essa historia a do Mateiro; me arrepio de emoção. Talvez por ter nascido no campo, e ter aprendido que o respeito a mata e seus moradores não nos faz medrosos; mas sim pessoas felizes por ter tamanha natureza e saber admira-la. Grande historia.
ResponderEliminarÉ companheiro as vezes eu me emociono ao escrever, porque sei que tudo isso vai aos poucos se perdendo, e aqui nessas historias e contos tento mostrar que é possível, viver, aproveitar e respeitar toda essa maravilhosa natureza que nos cerca..baita abraço e obrigado por visitar o blog.
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