CAUSOS E CONTOS

O CONTADOR DE CAUSOS - TIÃO CESÁRIO O HOMEM LOBISOMEM - continuação - A SAGA DE TIÃO CESÁRIO E O PERDÃO





O CONTADOR DE CAUSOS

         O dia parecia interminável, mesmo recheado de tantos afazeres e brincadeiras como o corre-corre no pomar, a pescaria de piabas e piauzinhos no ribeirão ou mesmo a constante caçada de rolinha com atiradeira, as horas pareciam dar cria.
         Dependurada no ombro, a capanga cheia  de pelotas de barro com cimento, preparadas com todo carinho, uma a uma enroladas na palma da mão e secas no beiral do fogão de lenha, aquilo era a evolução da munição perfeita para luta contras as inhambus e codornas que infestavam a palhada nos fundos do pomar.
         Menino é trem desatinado e sem medida, cheio de treitas, talvez faça parte da própria natureza da criança, que envolvida em um mundo mágico e fantasioso tanto cria como acredita em tudo que a mente pode alcançar, inclusive em crendices pra lá de malucas que se mostram no futuro ações totalmente sem fundamento.
         De baladeira na mão e capanga cheia de pelotas, o objetivo era abater um beija flor e engolir o coração, era uma simpatia besta e sem sentido, mas viva na mente da gente, fazendo isso a baladeira se enfeitiçava, e num se errava mais tiro, coisa sem sentido, igual engolir piaba para aprender a nadar...Nossa, perdi a conta de quantos cardumes engoli...kkk. De certo aprendi a nadar por força da ocasião, as piabas servirão somente para alimentar as lombrigas que habitavam meu bucho de menino.
         Outro costume besta era lambuzar de sangue a forquilha toda marcada de traços contando as vitimas da rustica arma, marcas de vitória na cabeça de um menino, hoje talvez isso seja bem mal visto, mas na época fazia parte da nossa infância.
         As rolinhas que perambulavam ciscando apressadas na terra batida que circundava o coxo de sal, eram o alvo perfeito e uma passarinhada certa na panela do almoço, alguns troféus eram extremamente cobiçados como as inhambus e as codornas,  mas nada mais fácil que o pobre João Bobo.
         Passarinho manso, bicho lerdo de cabeça grande e bico comprido de cor alaranjada, ausente a tudo, parecia estar no mundo da lua, aceitava a aproximação sem demonstrar o menor interesse por tudo que acontecia ao seu redor, podia se gastar uma capanga de pedras tentando acerta-lo que ele nem saia do lugar, até hoje fico imaginando como esse pobre vivente não chegou a beira da extinção, só sei que era pedra pra todo lado zunindo sem o mínimo de tréguae ele lá parado pensando quem sabe na morte da bezerra,  outra regra comum, de forma alguma bulir com o João de Barro, bichinho manso e trabalhador igual a ele não merecia ser alvo de baladeira.
         O dia começava antes mesmo do sol pontiscar os montes, quando o galo cantava por sobre o paiol, era nosso relógio natural, corríamos para o curral para  tomar leite tirado na hora, eu já chegava com minha caneca cheia de farinha de milho e açúcar, ai era só o Ditoso caprichar na espumeira do leite que era só felicidade.
         A maior certeza que eu tenho é que nada nessa vida foi mais importante na minha infância como passar as férias na fazenda, quando beirava o mês de junho já dava lombriga, eu nem conseguia dormir direito, uma ansiedade louca tomava conta do meu coração, ficava com o pensamento desatinado, pensava o dia todo na mata da beira do córrego, nos preás que faziam morada no montueiro de estacas por traz da casa, nas caçada de inhambu, nas pescarias, nas noites beirando a fogueira ouvindo os causos de caçada, e em tudo mais que fazia as férias na fazenda ser a melhor coisa desse mundo.
         Todo aquele contexto era maravilhoso demais para um menino apaixonado pela natureza, mas o que eu realmente mais gostava era passar a noite junto a fogueira ouvindo os causos de caçada contados pelo saudoso amigo Ditoso, aquilo era algo tão especial e bom que não sei como explicar, meus olhos brilhavam ouvindo sua voz, a forma que ele gesticulava e imitava a voz dos bicho, o canto dos pássaros, o romper da bulha, a astucia e as artimanhas desses viventes,  chega minhas mãos suavam frio com cada detalhe, me imaginava dentro da história, sentindo cada movimento narrado por ele, inté o cheiro do que acontecia no causo a gente chegava a sentir.
         Os causo de onça, de visagem e dos seres místicos da mata sempre foram os meus preferido, na entrada da casa simples e humilde, sobre o velho baú pairava pendurada na parede pela bandoleira a velha porveira, que era a testemunha viva de todas as histórias e causos contados por ele, eu só sei dizer que tudo aquilo me levava a um mundo de aventuras e sonhos que jamais vou esquecer.
         Criança tem que ter infância, e nada melhor que infância vivida na roça, hoje eu fico vendo o tanto que as coisas mudaram, e como mudou, chegou era da informática, do videogame, da vida virtual, e as vezes eu me pergunto. O que faz com que tantas pessoas se privem de uma vida no campo, ao ar livre, para viverem enclausuradas em seus apartamentos, abraçados pelo concreto frio e cinza, desconhecendo o sabor das matas, da água fria e acolhedora do ribeirão, do cantar dos pássaros, do cintilar diamantado das estrelas que iluminam o véu negro das noites do sertão.
E fico imaginando o tanto que fui feliz na minha humilde infância, onde tudo faltava e tudo era tão difícil, passava o tempo brincando de armar arapuca, armar laço, adorava fazer minha baladeira, e como era complicado encontrar ums simples pedaço de couro ou mesmo a parte mais importante, ¨a liga¨. Era um dia inteiro perambulando pelo pomar analisando as goiabeiras em busca de uma forquilha perfeita, forquilha forte igual de goiabeira não existe, mas talvez para se defender dos corte dos seus galhos a planta conhecendo a astucia dos meninos, aprendeu a crescer formando pouquíssimas forquilhas de bom agrado.
Hoje voltando ao passado vejo que a paixão em sentar a beira do fogo, ao lado do sertanejo vivido e ouvir seus causos era uma necessidade pessoal, e sem duvida foi o que mais me agradou em toda minha vida mateira, quando ainda era uma criança inocente e sem o menor sentido da realidade, já sentia um enorme prazer em fazer isso.
Na esquina da minha rua, nos fundos da casa de um velho caminhoneiro chamado Seu Nenem, havia um tronco de barriguda, transformado em banco, que também foi palco de inúmeros causos, ele após a janta costumava fazer o quilo lá fora contando histórias maravilhosas, então a meninada se aglomerava em volta de olhos esbugalhados escutando sua voz rouca narrar suas aventuras pelas matas do Brasil.
Eram causos que muitas vezes não nos deixava dormir, iam com a gente para cama, labutando em nosso pensamento, dando margem a pesadelos e insônia, mas era um medo gostoso, tão bom que no outro dia estávamos lá novamente, esperando Seu Neném sair para ouvirmos novamente seus causos.
Mas voltando as férias na fazenda, lembro-me saudoso, que do lado da casa do Ditoso a gente ajeitava a lenha antes do sol se por, assim que escurecia cada um se aprumava em seu canto a beira do fogo, com os olhos esbugalhados e ouvidos  aberto, ansiosos por um novo causo, ouvi-lo sentado ao alpendre preparando seu pito , com seu sorriso largo , nos fazia sonhar em um mundo de lendas e histórias vividas pelo sertão afora.
Hoje escrevendo esse relato, fico imaginando o tanto de sabedoria pairava sobre esse homem tão simples, que conhecia tão bem a vida dos bichos, suas manhas e artimanhas, as treitas de todos os viventes da mata, das plantas sabia de cada espécie sua serventia, inté dos insetos ele fazia conto.
Lembro-me do causo de um tamanduá bandeira, que foi encontrado morto abraçado a uma onça parda, a suçuarana. Tamanduá é bicho lento, de focinho cumprido. Dente ele não tem, sua língua comprida e pegajosa é a arma perfeita contra as formigas e cupins, mas para malinar na morada desses insetos, a natureza lhe deu unhas poderosas que também é usada como defesa em um abraço mortal.
         Pelo reboliço do mato amassado, a luta foi feia, mas a parda sendo jovem talvez não tivesse a malicia necessária para lidar com o velho comedor de formigas, que veiaco na lida perdeu a vida mas levou junto a onça agressora.
Sentar ao lado desses anciões do mato e ouvir seus causos com toda certeza esta entre as coisas mais prazerosas que já pude fazer nessa vida, e tudo isso não foi apenas uma fase da infância que ficou no passado, mas é uma constância que me traz felicidade até os dias de hoje, tanto para ouvir como para contar aos causos que escutei pelas minhas andanças nesses rincões, e tenho a certeza absoluta que se a vida me der prazo, quando meus cabelos branquear vou sentar no alpendre e contar muitas histórias para os meus netos e vou me ver neles,  como quando eu ouvia os causos do velho Ditoso.
É a confirmação de que a historia sempre se repete, por enquanto sento no alpendre da minha casa e dano a contar causos pros meus filhos e quando chega a hora de dormir eles pedem para contar mais uma história.
E eu pergunto. O que querem ouvir... ?
E a resposta é sempre a mesma.
Conta uma historia que o senhor viveu pai, com os sertanejos, com os bichos, suas aventuras pelas matas desse Brasil.
Ai eu vejo o tempo voltar ao passado, no brilho dos seus olhos, no sorriso ao me ouvir narrar, da mesma forma que eu me expressava ouvindo os velhos mateiros, sinto que eles entram na história, sentindo o cheiro do mato e ouvindo a bulha.
De contador de causo todo mundo tem um pouco, e aquele que não tem nada a contar foi porque não viveu, sei que a esta hora em todo lugar do mundo tem um contador de causo narrando sua história, e me faz o coração feliz saber que enquanto o homem viver nesse planeta , os causos também viverão, sei que os meus filhos contarão para seus filhos, e assim sucessivamente, muito dos causos vividos  e ouvidos por esse mateiro nascido na cidade, mas com o coração no sertão...

Bello 11-07-14


















TIÃO CESÁRIO O HOMEM LOBISOMEM.

Esse causo foi baseado em uma historia antiga, que era contada pelo saudoso Ditoso e por um caboclo por nome de Seu Libório, que conheci em meados de julho de 1989 quando estive em Queimadas-BA, Seu Libório, negro piauiense criado no sertão da Bahia e filho caçula de um grande amigo pessoal do meu finado bisavô, Sr. Cel. Hermiliano Barbosa, Curandeiro, benzedor, caçador respeitado e conhecido na região, amigo pessoal de Lampião, mais ai também já é outra história..
Contava-se um causo lá pras bandas das veredas da Bahia, que um homem por nome de Tião Cesário, era tido como o maior caçador da região, homem das matas, irrigado pela sede de mato, caçador de curso, esperador, exímio atirador e matador de onça laçada e morta de facão, treinado na arte de mateiro como ninguém, foi fama feita pra muitas léguas, não se sabe quantas vezes em meio a roda de prosa, ouvia-se falar seu nome em causos de dobrar a orelha e arrepiar a espinha, suas aventuras o transformaram em uma lenda viva pelas fazendas da região, Alguns falam que ele endoidou, porque ficou mortalmente ferido, após brigar com uma onça lombo preto da mão torta, que de treita queria lhe roubar um queixada, outros dispois de querer trato com o tinhoso, o pé de bode, o coisa ruim e foi justamente ai que começa essa história...Presta atenção compadre.....
Era época da quaresma, e dizia o povo. Não se pode nem fazer barba, espelho e santo tem que ser coberto com pano virgem e branco, caçada nem pensar, é época de retiro e oração. Mas Tião era cabra descrente e achava isso pura besteira de beato, e mesmo recebendo conselho dos mais veio, teimava em ir pro mato nessa data, inda mais pra espera, que o povo contava cada coisa que arrepiava inté a alma.
Recomendado por todos a se guardar nessa época santa, teimou e foi esperar, a fruteira estava bem pisada, subiu se aprumou e atinou os ouvidos, passou as horas e nada de bicho entrar, tava uma quieteira danada e a lua já ia pontando e clareando tudo, já batia 10:00 da noite, na hora de descer do trepeiro viu motivo dos queixadas mata a dentro, desceu devagar e seguiu negaceando no rumo das pisadas e da bagunça dos porcos, os ouvidos buscavam o som do bando que fazia algazarra no brejo, com a 36 na mão andando leve foi rompendo, pé descalço pra num fazer barulho, ora pisa, ora ouve, a lua grande já estava mais alta e iluminava toda treita. De olhos atentos cortando as brechas entre folhas e troncos, buscava um movimento qualquer, conforme aumentava o barulho, mas ele rompia, até que pode ver o vulto do lombo com pelo grosso caminhando de um lado para o outro em meio ao lameiro.
Quietou, beirando uma arvore de tronco grosso, só esperando a hora de pregar fogo, ensacar a carne e voltar pro barraco para preparar os miúdos, afinal a barriga já dava conta da fome e beirava a meia noite, de repente e sem motivo o bando começou a ficar nervoso, uns gruíram, outros correram, e ele não entendeu o que estava acontecendo, afinal tava ali parado, quieto, sem levantar suspeita, até que no alvoroço um porco passou dando ponto de tiro e ele fincou a cartucheira no pé do pescoço dele e ...Bummmm....Pronto, a janta tava garantida, o bruto caiu estrebuchando, tentou levantar e caiu novamente, entregado os pontos e o sangue por entre as folhas secas da mata, apenas tremia a pata traseira, agora pense num queixada grande, desse porte nunca tinha visto, aprumado mermo.
Sem perder tempo ele sacou do velho punhal sangrou e se apressou pra tratar do trem, afinal estava longe de casa e a volta não seria fácil, tirando a laçada do bolso piou e pendurou o bruto, colocou o punhal na cinta e sacou do bornal a faca coureira, pequena e leve, própria pro serviço, tratou o bicho com a habilidade de mestre, abriu o saco de linha e foi colocando os pedaços, já separando, serviço terminado amarrou a boca com embira e foi até o brejo se lavar, abaixou em uma poça limpa, lavou a faca e a mão, colocou no bornal e voltou para buscar a carne, o que ele não contava era encontrar o lugar limpo....
Eita....cadê o trem, as marcas na folha mostrava que o saco foi arrastado, empunhando a 36, foi de ponta e pé inté que avistou o saco tombado, rasgado e com o pernil a mostra, olhou pra um lado e pra outro , mas não viu nada, cismado engatilhou a arma...Tibummmm...foi o tombo, e o trem fedeu..
Uma lombo preto que num tinha mais por onde crescer o derrubou e saiu rolando barranco abaixo, no embolo a 36 disparou e sem recurso lembrou do punhal que estava na cinta, a gata ágil e forte já tinha esfolado sua orelha toda e o sangue descia banhando seu corpo , a briga estava feia e a bruta não queria brincadeira, muito ferido e perto de perder o tino do pensamento, procurou forças, e assim ele consegui fincar o punhal no peito dela, atingindo de cheio o coração, e mesmo na ânsia da morte a gato ainda fez muito estrago no pobre homem...
Passaram-se dois dias e urubu já contornava a beira da mata, Zé Justino um sertanejo ali de perto ia passando e resolveu aprumar e ver do que se tratava, pode ser criação, entrando logo se deparou com a imagem bruta do Tião Cesário caído de costas, banhado em sangue pisado e cheio de mosca botando bicho, do outro lado a onça morta com um baita rombo no peito ...Deus acuda!
O que aconteceu aqui? O Tião ta morto....Deus do céu..E a onça já podre era serventia de bicho e festa de urubu
Chegando perto ele percebeu que o Tião ainda tava vivo, ele revirou os olhos balançando a mão como quem pede ajuda, o Zé entrou em desespero, ficou ali parado um tempo sem tomar rumo do que ia fazer, afobado colocou ele nas costas e rompeu até chegar à montaria, jogou no lombo do cavalo e se dirigiu pra casa pra socorrer o homem, e ficou tudo pra traz, o bornal, a arma e a onça morta, fora os trem que desceram grota a dentro com a queda na hora da briga ..
Chegando em casa lhe deu água fresca, tratou de limpar as feridas e ajeitou uma galinha pro mó de fazer um caldo, sua perna estava inchada e muito roxa, na orelha quase decepada tinha bicho pra dá de pau, se bicho fosse dinheiro Tião era homem rico, naquele tempo medico era trem difícil e distante, mas tinha o Anastásio Benzedor, veio retirado na arte das ervas e da rezaria, conhecedor das dores e das doenças, que depois de avisado, logo se chegou montado em uma mula castanha com um saco cheio de folhas e mandingas, foi-se sete semanas cuidando do Tião, que de morto aos poucos foi tomando vida..
Durante as madrugadas tinha pesadelos e gritava muito, acordando assustado e falando coisas sem prumo, e foi-se mais 4 meses pra ele voltar a caminhar com muita dificuldade, puxando a perda e torcendo a coluna, as vezes danava a resmungar, com lagrimas correndo ao canto do olho, sentia saudade do campo, das veredas e da mata, nesse momento lembrou da 36, e danou a perguntar pela companheira, só ai foi perceber que ela tinha ficado perdido na mata...Pra ele o veio Zé tinha guardado a arma, mas ele nunca tinha perguntado antes.
Posso pedir um favor amigo?...Vai lá onde ocê me achou e procura minha 36, é trem de família e deve de ta entre as moitas ou na boca da grota, faz isso por mim, vai...Sem pestanejar o Zé pegou o cavalo e rompeu rumo a capão do brejo, entrando na mata se deparou com uma ossada esparramada pelo chão, trem que um dia foi onça bruta e criada, pegando criação alheia, mas olhando bem viu que a ossada era de gente, um trem esquisito, bicho misturado com gente, ele se arrepiou todo, fez sinal de cruz, de longe avistou o velho punhal com o cabo todo ruído de cupim e coberto de folhas, pegou prendeu na cinta e pensou, se os trem caíram na grota, se foram com a enxurrada que carregou pro ribeirão , desceu grota abaixo em busca da 36 e nada, dispois de muitas horas procurando desistiu, voltou triste por não ter boa noticia pro amigo enfermo, mas uma pergunta ....
Uai se era onça, como tinha osso de gente?....Cismado com aquela ossada, veio matutando no balanço da montaria e indagando..... Era onça e virou gente, ou era gente que virava onça?
Compadre, achei não, só o punhal, o bornal cupim deu conta, se a 36 caiu na grota de certo a enxurrada levou, choveu forte por esses dias, lembra, e tem mais, volto mais lá não, tem dedo do coisa ruim nisso, no lugar da ossada da bicha tinha uma ossada parecendo de gente, sei não, isso é trem de motivo mal contado...Deixa de besteira homi, retrucou Tião, foi eu que sangrei e matei, era lombo preto criada, era onça sô, e baixou a cabeça triste, e nada mais falou naquele dia, já não podia andar como antes, as dores tomavam conta dele, com muita dificuldade ele saia do quarto pra cozinha, e já tava mais que na hora de voltar pra casa, já abusara muito da hospitalidade do amigo...
Foram dias difíceis, a saudade das caçadas o fazia sofrer demais da conta, foi nesse tempo, diz o povo, que ele fez o trato, vendeu a alma, ajeitou prosa com o coisa ruim a fim de poder voltar a caçar...Dizem que numa noite de sexta feira na época da quaresma ele marcou encontro com o mal falado na encruzilhada do veio cemitério da fazenda Fundão, bem na hora grande...Meia noite.
Eis que conta o povo..... Diz que um redemoinho veio de longe no rumo dele e foi se desfazendo devagar, subiu um cheiro forte de caldeira queimada, e um veio de paletó preto com uma bengala de ouro na mão apareceu, tinha um chapéu de aba larga branca e fumava um charuto fedido... Surgiu de vento, assim do nada, rindo, e ao mesmo tempo um vulto de onça cortou o cemitério a galope se misturando a gargalhada do Coisa Ruim, só pra atinar a lembrança do Tião...
O susto foi grande, só não saiu mal feito nas calças porque não tava pronto, mas pra quem matou onça bruta com a mão isso era coisa a toa...Dando gargalhadas o veio rodeou, rodeou sempre olhando bem no fundo dos seus olhos, dizem que o prosa ruim tinha olho de fogo, e cuspia veneno de cascavel, e foi-se chegado, devagar, nisso o vento parou, e um silencio esquisito tomou conta de tudo....Subiu um cheiro insuportável....Cheiro do coisa ruim...
O que você quer? Tenho muito trabalho, num posso perder tempo com aleijado xucro não, desembucha, anda, seu porqueira..E caiu na gargalhada ...................kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk.
O home era bruto e não teve medo nessa hora de ofensa, retrucou pro contratado em tom de briga.............Porqueira é oce, e eu quero voltar a caçar, num consigo andar direito e perdi minha 36, agora minha vida acabou, vivo remoendo feito lagarta, e caracol anda melhor que eu, quero vorta a andar firme e quero minha 36 de vorta, e ocê prosa ruim vai ajeitar isso pra mim..
E o tinhoso caiu na gargalhada..Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk.....E o que oce tem pra mim...oce num tem nada di bom, num tem negocio não, e dando as costas começou a andar.....
Pera ai homi, tenho minha alma, falou o Tião em tom de brabeza....
O mardito parou, olhou pra traz , esperou um tempo e disse: Tem não............
Ela já é minha a muito tempo, lembra quando você era rapazola, criando bigode, e que me prometeu sua alma em troca de ser o maior caçador da região, lembra....Foi um trato sem contato, e te dei o que você queria, você foi o maior, virou lenda nas roda de prosa, agora num tem mais nada pra mim, bem ao contrario ocê que me deve e é devida alta, e alem do mais ainda tem conta, você matou meu cobrador..
Nessa hora lembrou-se o tanto de vez que na juventude, atinou proposta pro Capeta, sem jeito e sem noção do resultado, mas não quis retrucar, pois sabia que era briga sem causa ganha, e mudando o rumo do pensamento perguntou...Que cobrador? Eu matei nada, seu porqueira, nunca matei gente não, ocê ta doido, isso é treita pra me enrolar, sorte sua eu ta nessa situação senão ocê ia ver o que é bom...Kkkkk...Soltou novamente uma gargalhada, naquela hora a neblina da madrugada invadia o cemitério, e já se enxergava pouco....E o coisa ruim retrucou
Você matou sim, lembra da Lombo Preto, era meu cobrador, tava ali pra cobrar a alma que você me deve...Tião parou e foi longe, lembrou do Zé falando que no lugar da ossada da onça tinha um trem aparecido com osso de gente e matutando respondeu........ Mas como assim? Que diabo é isso, o home virava onça, pra mó de cobrar alma? ............Kkkkkkk...Isso mermo, vou te dar uma chance, e num rodopio fez aparecer em sua mão a velha 36, novinha, como saindo do mascate, chega brilhava só pra atiçar o pobre...ai veio a proposta.....
Ocê vira meu cobrador, na época da quaresma em noite de lua, ocê vira bicho de pelo e unha grande, e vai cobrar quem me deve, em troca, te boto andando feito menino novo e te entrego a 36, e ainda coloco um gatilho de ouro com mandinga, ocê nunca vai errar um tiro sequer...
Tião num pensou duas vezes, já tava tudo perdido mesmo, tinha perdido alma, arma e saúde, e sem pestanejar, firmou a palavra... Trato feito....Dizem que o coisa ruim se desfez em redemoinho novamente e sumiu gargalhando na fumaça branca da neblina.... Logo depois pelo portal do cemitério saiu o Tião, andando firme e de passo rápido, rosto limpo sem uma cicatriz e com a 36 no ombro ....
Dizem que dispois desse dia ele firmou novamente na lida da caça, e seus feitos foram maiores ainda, e na época da quaresma, na lua grande, ele vira bicho lobisomem e vai atrás de quem deve pro coisa ruim, rouba suas alma e aprisiona no gomo de um bambu que carrega no lombo...
Dizem também que ele ta virando mundo, teve inté a ajuda do Anastásio Benzedor, inté o vigário ta lutando na causa dele, agora ele ta caçando com nunca caçou, ta caçando um jeito de salvar sua alma e parar de virar bicho na quaresma...Mais isso é uma outra história companheiro, que um dia desses em outra roda de causo eu conto procês......

Bello 09/06/2011







A SAGA DE TIÃO CESÁRIO E O PERDÃO




É hoje que Tião Cesário, ganha a brenha do sertão bem antes do escurecer, e rompe mata adentro, cortando campina e cerradão pra virar Lobisomem, assim que a lua pontar no centro do céu, ele rodopia na poeira e cria pelo, e vai sair rincão afora em busca de cobrar as conta do Coisa Ruim, é nessa noite que aqueles que fez trato com o Tinhoso paga o preço com a alma e tem o nome riscado do livro preto....Inté antes do dia clarear Tião Cesário virado de bicho já colocou um bocado de alma dentro dos gomo do bambu que carrega no lombo, essas alma quem sabe um dia o tinhoso libera em forma de saci, ou de currupira, ou de mula sem cabeça ou qualquer outro mal feito que assombra as corrutelas dos sertões do Brasil.
Dizia o povo que Tião Cesário, estava desesperado, procurava ajuda porque não aquentava mais a presença do Cabrunhão em sua vida, se sentia acuado, sem motivo de alegria, e foi pedir socorro a Pai José, que por sua vez pediu apoio a Dona Maria benzedeira e ao Vigário.
Pai José era benzedor aprumado e respeitado daquelas brenhas, tinha fama comprida de curador, raizeiro e conhecedor dos mistérios dos espíritos, das almas perdidas e das artimanhas do tinhoso, era mais uma porta que Tião encontrou para tentar fugir da maldição que tomou conta da sua vida.
Tião vivia triste, sem motivo de riso, não tinha mais sossego e por isso e outros motivos se distanciou o máximo que pode de gente, se embrenhou pras bandas mais longínquas da mata onde fincou morada, quando aparecia no vilarejo era motivo de medo e curiosidade, sua barba em tons grisalhos, cobriam-lhe o rosto e parte do peito, não podia entrar na paroquia nem seguir a quermesse, porque o Coisa Ruim apertava seu peito e se manifestava em loucura, para se encontrar com o vigário era preciso marcar ponto de encontro, inda assim tremia e se arrepiava na presença das pessoas de Deus.
Naquelas bandas sua história era contada de muitas formas, e chamava a atenção muita coisa que acontecia com ele, o povo encabulava porque ele não envelhecia, talvez foi por isso, tentando encobrir o olhar desconfiado do povo que ele deixou barba e cabelo crescer de forma que pouco se via do seu rosto, o chapelão de couro de mateiro terminava de esconder seu semblante, que hora em hora transfigurava com olhar de fogo.
Quando aparecia no vilarejo, era pra buscar mantimentos e vender couro de bicho e carne,  gostava de rapadura, de farinha, sua feira era simples somente o básico e necessário, muito sal para salgar carne e tratar couro junto com angico e barbatimão, depois de ajeitar tudo no lombo das mula, seu destino era sempre o mesmo, ou ia se encontrar com o vigário, com Pai José ou Dona Maria, dizem que na cabana deles também o tinhoso não deixava ele entrar, de certo ele já tava sabendo da tramoia pra mó de tirar seu cobrador.
Então, hora estava beirando a tenda de Pai José, hora em Dona Maria a benzedeira na beira do rio, hora com seu vigário a sombra da gameleira, o que Tião procurava era o perdão de Deus, se libertar das correntes que o estavam sufocando.
Dona Maria era mulher de reza, andava com véu na cabeça, nunca se casou pra poder dedicar a vida a ajudar o povo carente, ela muito simples, não tinha nada de posses, mas fazia de tudo por quem estava doente ou necessitado, suas reza tinha fama, e se dizia por todo lado que muitos milagres aconteceram graças a sua intervenção..
E os três rezadores se juntaram a fim de ajudar o Tião, eles sabiam que salvar aquela alma das unhas do Mardito, do Cramunhão, do Tinhoso, era trabalho difícil, mas necessário, pois uma alma perdida deve de ser resgata a todo custo.
Certo dia um Jagunço chegou cedo a porta do seu barraco, homem de cara feia, queimada de sol e ruim feito erva que mata criação, com sotaque pesado e fala grossa, e olhando tom da palavra, não estava ali para brincadeira, trazia uma ordem e não um pedido, pois o homem antes de abrir a boca para falar, já posicionou a mão sobre o trinta Colt Cavalinho, que trazia na cinta, do lado da cela uma Winchester 44 papo amarelo, tudo isso indicava que o tal Jagunço estava disposto a briga.
_Ruma seus trem, espingarda e traia de trepeiro, Coronel Gonzaga que te ver.
Sabendo da fama daquela gente, Tião nem proseou, jogou tudo que era necessário no saco de embira e assobiou chamando sua mula, que logo chegou para ser arreada, com a agilidade de homem mateiro logo estava montado e seguiram lá pras banda da Serra Grande, onde ficava a pose do temido Coronel Gonzaga, suas terras tomavam conta de onde os olhos pudessem alcançar, assim como a sua fama de homem bruto, caçador respeitado e matador de gente.
Entre eles havia uma certa murrinha, pois Coronel tido como um grande caçador, dono de armas boas e reconhecidas, guardava raiva de Tião por ter mais fama que ele, e Tião sentiu que alguma tramoia estava por vir, feito aranha que tece a teia a fim de pegar o inseto desavisado para o jantar.
No fim do dia eles estavam em frente à casa grande, de onde surgiu pela porta a figura lendária do Coronel, homem troncudo de bigode grande, roupa alinhada e chapéu branco, que com voz grossa foi logo dizendo:
_Num precisa apia não, fica ai mermo, pião num pisa no meu alpendre...
Mandei buscar oce Tião, para dar cabo de uma pintada que anda aniquilando meu gado, você matando ela vai me fazer feliz, e te dou palavra de Coronel e promessa de recompensa em dinheiro, vou lhe dar 24 horas, se matar ela nesse prazo tem 100 contos de reis, se passar desse prazo inté 48 horas tem 50 contos de reis, se passar disso ....Num ganha nada. E oia, quero a cabeça e o couro da mardita, sem muito estrago Seu Tião, sem muito estrago, pra mó de enfeitar minha sala.
Tião Cesário olhou nos olhos do Coronel tentando entender o que se passava na sua mente, porque ele estaria dando aquela empreita se era conhecido como grande caçador, então ele retrucou:
_E se num matar ela...............
O Coronel balançou a cabeça em sinal de desaprovação e respondeu:
_Num queira nem saber da recompensa que vai ganhar não Seu Tião....E baixou as duas mãos apoiando nos dois trinta laqueado que brilhavam na sua cinta, foi bem dado o recado, Tião apenas levantou a aba do chapéu e seus olhos refugaram fogo de raiva, e o jagunço que estava do lado se afastou cismado, dizem que nessa hora um cheiro de enxofre tomou conta de tudo.
_Tem carência não Seu Coroné, aqui é Tião Cesário fio do Capeta, e pro Capeta nun tem dificuldade não..
E o Coronel deu um passo pra trás. Nessa hora sentiu a espinha esfriar e viu que não estava lidando com qualquer um, aquele Tião era realmente cabra diferente, e aquilo ali confirmava o que o povo dizia, ele na quaresma realmente virava Lobisomem, na sua cabeça a trama estava pronta, ele queria apenas testar as habilidades do mais famoso caçador da Bahia que em breve seria um troféu.
Tião virou sem dar prosa e saiu trotando com sua mula, na sua cabeça veio muitos pensamentos, nessas horas de humilhação, Tião parecia ter orgulho de trabalhar pro tinhoso, e o povo tinha medo disso, respeitava ele, porque a noticia dos seus feitos tinham rompido a muito tempo as fronteiras da velha Bahia, mas no fundo seu coração se espremia e chorava dentro do peito a certeza de que no fim de tudo, seria levado para os confins do inferno e sofrer eternamente longe da luz de Deus.
Mateiro por natureza pediu para Jagunço indicar os pontos dos quatro últimos ataque, logo ele trilhou o itinerário da gata, e veiaco, já calculava que tinha mais de uma agindo por ali, de certo um casal. Onça é bicho sem prumo, num tem prazo certo de acasalar.
Pensou, ou pode ser mesmo uma fêmea com dois filhotes já criado beirando se apartar, ou mermo pode de ser dois machos em um único território, ainda em briga pelo domínio da área, mas de uma coisa ele tinha certeza era serviço de mais de uma, os bicho miúdo tava sendo atacado por parda, mas os bezerros, os garrote e as novilhas , era treita de onça pintada mesmo.
Olhando bem a cena de uma carniça deixada de pouco tempo, Tião matou logo a xarada...
_É uma fêmea com dois filhotes, já erado, ela ta matando muito e comendo pouco, ta ensinando os fio a caçar, e como o gado é mais fácil, ela acostumou bulir na criação.
Onça pintada gosta de águada, e labuta com os fiotes inté os dois anos de vida, dai pra frente quando inicia o cio eles se apartam, em busca do próprio território, bulir no território alheio é problema certo, a barrigada é de 100 dias mais ou menos, dai pra frente qualquer hora a gata pari, pode nascer inté quatro fiote, mas o normal é dois, e dispois de 80 dias já tá comendo carne, mermo que ainda bebe o leite da mãe, a gata precisa de muito espaço pra caçar se for macho ele apruma mais de 13 leguas em quadrado e se outro entrar tem briga, a fêmea tem espaço de caça menor, perigo maior é onça veia ou nova demais, mas a bicha no auge da idade é mais calma, e da mesma barrigada nasce a preta ou a amarela pintada.
O povo antigo tem costume de dizer que a onça preta é cria do tinhoso, que é mais braba, mas é tudo prosa de gente atoa, e a mesma coisa da pintada, só o couro que muda de cor, afinal é o mermo bicho.
Ele sabia que ela não ia voltar naquela carniça, então matutou o provável caminho que a família da pintada iria percorrer inté chegar no pasto onde estava a bizerrada, ele precisava ter certeza do que fazia, afinal o prazo de hora dado pelo Coronel estava correndo, não tinha muito tempo para treitas sem resultado.
Então ajeitou um bezerro novo e amarrou ele perto da entrada da serra, lugar mais provável da descida da bruta, gata gosta de pedreira, de grota, e aprumando bem os feitos dela, sabia que aquele caminho seria o mais certo que ela tomaria, mesmo porque era o menos íngreme, subiu um bom trecho onde pode achar uma carcaça de canastra e algumas arvores marcadas de unha, então estava mais certo do local, ali era a rota da pintada e seus filhotes, agora era subir alto em um angico onde o bezerro estava apeado e esperar, com pensamento firme de empreita realizada.
O dia ia se findando, o sol se esforçava para clarear o mundo, mas a serra em sua maestria já o encobrira de forma a se iniciar o momento mágico em que a noite se esbarra com a barra do dia, logo tudo escureceu, uma anta passou em disparada serra abaixo, sinal de que alguma coisa vinha rompendo descendo a serra, mais para o campo os gritos da coruja buraqueira anunciava que tinha bicho chegando, e bem antes das nove da noite a bruta começou a dar voltas no angico, os filhotes eram dois, como Tião tinha previsto, ainda imaturos e sem experiência faziam muito barulho, agoniando o bezerro.
Tião tinha que pegar a mãe primeiro, ai então os filhotes ficariam por ali, e voltariam para perto do corpo dela, ou mesmo tentariam atacar o bezerro, e seria mais fácil dar cabo de toda família, mas a bicha veiaca sentiu a presença do esperador, e demorou um bom tempo rondando o local, quando ele menos esperava ela atacou o bezerro fazendo-o girar no ar e já caiu com a boca grudada na goela do bicho que na ânsia da morte apenas batia as patas traseira.
Foi quando ele levou a 28, e o gatilho reluziu sua magia, e com os ouvidos afinados localizou o ponto que a bicha estava, e sobre a pouca luz das estrelas desferiu o disparo.......Brummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm.
E a bruta largou o bezerro rolando para o lado em um gemido esquisito e fino, logo os filhotes, bem criados já beirando os dois anos pularam no bezerro também sem dar motivo para o barulho do tiro, a ânsia de matar era mais forte que todos os extintos, o cheiro do sangue pairava no ar, enquanto isso Tião já tinha trocado o cartucho e preparava o segundo disparo....Brummmmmmmmmmmmmmmmmm....Saltou um dos filhotão caindo logo a beira das raízes do angico, faltava um, esse se afastou, em passos lentos e desconfiados, mas passou na parte de capim ralo onde Tião pode ver seu vulto, ora andava, ora parava.
Ele cochilou na mira da 28, e com olhos de mateiro experiente buscou a palheta, calculando um tiro mais longo, de 40 a 50 metros, e o gatilho brilhou e devagar ele acionou o mecanismo que explodiu o cartucho...Brummmmmmmmmmmmmmmmmmm....
E logo escutou o gemido de morte ecoando serra acima, o serviço estava feito, tratou de ajeitar a tralha ensacar e descer, com a agilidade de anos de lida, pendurou ali mesmo os três gatos e arrancou a camisa deles com cabeça, rabo e mão como exigiu o Coronel, tratou de enrolar e amarrar firme, fazendo jeito de facilitar o transporte.
E bem antes do sol nascer montado em sua mula já avistava de longe a mancha branca da casa grande, não precisou muito prazo,  batendo apenas 12 horas, Tião Cesário já pontava a beira do alpendre com 3 couros de onça pintada todos com cabeça e com um único furo do sovaco, furo de balote, feito a mão, que Tião usava pra tiro distante, ou em trem de maior tamanho, feito de estanho preparado nas artimanhas do Tinhoso.
O Coronel Gonzaga abrindo a porta se assustou vendo os três couros enrolados na escada do alpendre e Tião do lado de sua mula pitando um bom palheiro após tomar uma boa dose de pinga, um misto de raiva e inveja tomou o sentimento do Coronel, que sem muita prosa, jogou o pequeno saco de couro com os 100 reis nos pés de Tião, que quando abaixou para pegar foi surpreendido, com o Coronel já com o trinta na mão bem ao seu lado..
Ele pulou pra traz e foi com a mão na cintura pegando firme no cabo do punhal, mas o Coronel deu dois passos pra traz já gritando...
_ Carece não home, só quero te dar de presente esse trinta, oce provou ser mais do que eu pensava.
E rodopiou o revolver de forma que o cano ficou em sua mão e a coronha para o lado de Tião, que desconfiado, olhando para os lados pegou o trinta, conferiu suas munições e o colocou na cintura dizendo...
_ Gradecido...Coronel..
Montou em sua mula e sem olhar para traz seguiu caminho, mal ele sabia que aquilo nada mais era que um teste, o Coronel queria saber o tanto que realmente ele era bom, pois sua fama de virar bicho era a mais nova obsessão do contratante, Coronel já tinha matado tudo quanto era bicho, mas nunca tinha matado um Lobisomem, e o plano era na próxima quaresma caçar Tião Cesário.
Na volta para casa com os 100 contos de reis no bolso e um trinta na cintura, presente do Coronel Gonzaga pelo belo serviço prestado Tião vinha sorridente e feliz, não imaginava o que o destino estava preparando,  o sol começava a enfraquecer autorizando o escurecer da noite, quando ele chegou a mata fechada que tinha que atravessar desmontado puxando a mula, um trecho pra mais de 1500 metros, inté sair do outro lado onde pegaria o derradeiro trieiro até seu barraco, calculava chegar em casa beirando a meia noite.
Desapeou e seguiu mata adentro puxando a mula, a cada passo o trem ia escurecendo mais, resolveu então acender a lamparina, quando de repente a mula empinou louca arrancando a corda do cabresto da sua mão, e em um pulo uma onça preta enorme lhe jogou no chão, a espingarda caiu longe pra mais de metro, seus olhos ainda puderam ver o brilho do gatilho.
Então a onça investiu de novo nele, que ficou caído ao chão quase inconsciente, e a bruta subiu no seu peito apoiando mais de 100 quilos, fazendo sua respiração parar, quando Tião abriu os olhos e conseguiu alcançar o revolver na cinta,  viu olhos da onça preta virar fogo, com labaredas  que clareou tudo a sua volta....
Foi quando a voz do Coisa Ruim saiu pela boca da gata....
_Ocê num me engana não Tião, to de olho nocê, sei que anda se encontrando com gente que luta contra minha treita, e sei que anda tramando alguma coisa contra meu feitiço, mas saiba que sua alma é minha, e trato com Diabo....Não tem como ser desfeito...
E sumiu virando fumaça,  e Tião voltou a respirar com dificuldade, dos seus olhos correram lagrimas e no seu coração ele tinha a certeza, que por mais que o Tinhoso tivesse seu poder, Deus era maior.
As dores estavam em todo seu corpo e saia sangue da sua cabeça, em dois talhos feitos pela unha afiada, meio tonto, desmaiou, acordando somente no outro dia, beirando o raiar do sol com a mula cheirando sua enorme barba.
Nesse ponto a treita estava formada, três pessoas de luz tentando salvar a alma de Tião,  o Coronel Gonzaga querendo caçar um Lobisomem e o Tinhoso de olho para não perder a alma do seu cobrador.
Chegando a casa Tião ainda sentindo a pegada do Cabrunhão parou a bica dágua e tomou um bom banho lavando as feridas a fim de tirar o sangue pisado, e com a faca em punho raspou uma casca de barbatimão cobriu as feridas, acabou de chegar em casa, soltou a mula e tratou de comer algo, tomar uma e deitar na rede para descansar.
A necessidade da caçada cada vez mais invadia seus pensamentos, e ao olhar a velha 28 presente do tinhoso, seus olhos chamejavam fogo e seu coração disparava, os tiros tinham cheiro de enxofre e eram certeiros feito a foice de Dona Morte, no meio da escuridão da noite o gatilho de ouro brilhava de jeito incomum. Pai José, em suas orações já chegara a conclusão de que o feitiço estava na espingarda, mas tinha algo mais, e ai é que morava o perigo, nem ele, nem a benzedeira e nem o próprio vigário sabiam onde estava o outro elo da corrente que fechava a treita do Tinhoso.
Estava chegando a quaresma, e dois grandes enredos cercavam Tião Cesário, um era o Coronel Gonzaga preparando para caça-lo, e outro era os três amigos tentando livrar ele da maldição.
A ideia era separar ele da espingarda, e pensando no assunto tanto Pai José, como Dona Maria e o Vigário, concluíram que o feitiço só poderia estar na espingarda,  então  chamaram um amigo de sua confiança para executar a empreita, ele teria que buscar a 28 sem deixar vestígios, sem fazer rastro e sob segredo de morte, para isso escolheu Laudelino, negro, magro e baixo, de pisada mansa e mateiro por natureza, Laudelino teria que romper durante o dia, dando voltas sem pegar estrada, inté o barraco de Tião, e de lá retirar a arma sem que ele percebesse pois faltava dois dias para o início da quaresma.
No mesmo período, o Coronel ajeitava 12 jagunços os mais experientes na lida da mata, e uma boa junta de cães farejadores, na sua carabina preferida a winchester 44 papo amarelo, 10 munições com ponta feitas de prata, metal trazido de terra sagrada, foram forjadas a partir de um grande crucifixo que veio de Portugal.
Dizia a lenda que Lobisomem só morria com tiro de prata sagrada, de apetrecho de paróquia, e que tinha que ser tiro certeiro, bem no coração.
Então sem que Tião soubesse, uma grande nuvem negra se preparava sobre sua cabeça, faltando um dia para quaresma, ele pra tentar não cumprir sua sina, pensou em fugiu pro mato alto e se acorrentar em uma grande arvore.
Acordou cedo e ajeitou as tralhas para sair, quando procurou a 28 se assombrou, ela tinha sumido, ele entrou em desespero, revirou toda casa e no portal viu o rastro de pisado de gente, alguém roubou a 28 , sem saber o que estava acontecendo e como o tempo estava curto não tinha mas o que fazer, se não tentar o que seu coração estava mandando, fugir e se acorrentar.
Saiu a passos longos, apressado, rompendo mata adentro e depois de muito andar encontrou uma grande arvore onde se acorrentou, mas o dia foi se passando, e a noite chegou, quando a lua pontou no céu ele sentiu as forças do mal chegando, logo estava virado bicho.
Depois de transformado as correntes eram como barbantes, ele a arrebentou num piscar de olhos, encontrar a 28 era agora a ordem do Cabrunhão, então voltou a galope para casa, lá o bicho cheirou o rastro na entrada da porta e pegou o faro de Laudelino, nessa mesma hora os cachorros do Coronel já estavam no seu rastro, em meio a mata ele e seus bandos de jagunços seguiam para o barraco de Tião, no rastro do Lobisomem.
Mas o bicho já estava longe, beirava a casa de Laudelino que morava junto com a mulher e o único filho Gabriel, de 5 anos, então o bicho cheirou em volta da casa uivando, lá dentro estavam reunidos os três amigos a fim de com reza proteger a casa e evitar que o Lobisomem recuperasse a arma, Pai Zé acreditava que a arma se transformava no pedaço de bambu que ele carregava nas costas e que guardava a alma dos que o Tinhoso tinha divida dentro dos seus gomos, Dona Maria já acreditava que a arma era a ligação do mundo do Cramunhão com o mundo dos vivos, e o Vigário acreditava que tudo era possível numa treita de Capeta, Lobisomem e pacto demoníaco, então tudo que tentassem seria valido.
Mesmo com muita reza o bicho com suas garras rebentou a porta e entrou na casa, saiu quebrando tudo,  e o povo desesperado fugiu pela porta dos fundos correndo em direção ao rio, Laudelino com o filho no colo ficou para traz, e enroscando o pé em uma raiz ciuno chão com o pé quebrado, aos gritos chamando por Nossa Senhora e São ‘Sebastião.
Foi quando os cachorros do Coronel chegaram acuando o Lobisomem ao pé da pedreira, Laudelino caído não podia fazer nada, a criança  chorava desesperada, sem ter reação em frente a um animal de quase dois metros de altura,  peludo, de rosnado alto e descomunal, quando os jagunços cercaram a área e o coronel empunhou a 44 com balas de prata no rumo do lobisomem, a criança estava no ângulo do tiro, entre o rifle do Coronel que tremia por demais e a criatura, mas nesse momento  o pouco de alma de gente que ainda estava na besta, encontrou o coração de Tião, e ele viu que a Criança corria perigo, o tiro ia acertar na cabeça dela, e quando o Coronel apertou o gatilho ele pulou a frente do menino e o projetil acertou seu coração.
E a criança vendo que aquele animal salvou sua vida, o abraçou e pediu a Deus por ele, comovendo todos que estavam ali em volta, então enquanto aquele lobisomem morria em suas  mãos, o menimo ele pedia por sua vida, por sua alma, e ofereceu a vida dele, no lugar da vida do pobre animal, Gabriel além de bom filho inda era coroinha da paroquia, nesse meio tempo o bicho voltou a ser homem, e do seu peito o sangue escoria em seus últimos suspiros.
Foi quando um anjo apareceu, e pegou na sua mão, dizendo..
O Pai te perdoa...Vem comigo...
E na mesma hora seu corpo perdeu a vida, Tião finalmente estava liberto, e o tinhoso perdera seu cobrador, a arma, a velha 28 que estava na mão de Pai Zé virou pó.
Muitas pessoas afirmam ter visto as asas brancas do anjo sobre eles, outros que Tião morreu de falha no coração, mas Pai zé, Dona Maria e o seu Vigário sabia que a luta de anos finalmente chegou ao fim e que aquela alma perdida tinha encontrado o perdão e que a guerra estava ganha.
O Coronel sem muita proza voltou em cima do rastro, depois que viu que de gente não dava pra tirar o couro, mas dentro da mata, do lado da sua cela,  no lugar Winchester 44 apareceu a 28 do finado Tião, sem saber ele trouxe pra si mesmo com sua ganancia e arrogância a maldição do Tinhoso.
Inté hoje muitos anos depois a lenda de Tião Cesário corre os rincões do sertão da Bahia, uns dizem ser verdade, outros conversa desatinada do povo, mas no cemitério da paroquia inté hoje tem a lapide da sua sepultura, com as inscrições .
Aqui repousa Tião Cesário na paz do Pai Maior.
Seu corpo estava guardado em solo sagrado, para que o Tinhoso não o persiga mais, agora já o Coronel Gonzaga, dizem as, más línguas, em toda quaresma vira bicho, e nos tempos vividos fora dela, anda nos campos e nas matas com a velha 28 buscando acalmar sua sina na boa e velha caçada.


Bello 02/10/14
 






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